05 dezembro 2010

‘Ninguém engana a Dilma nem põe faca no pescoço dela’

Escolhido para ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho diz que presidente eleita não será refém de partidos

Vera Rosa / BRASÍLIA - O Estado de S.Paulo




'Lula adora ser presidente. para deixar, vai ter síndrome de abstinência', diz Carvalho

Testemunha privilegiada dos bastidores do Palácio do Planalto, o ex-seminarista Gilberto Carvalho sempre atuou longe dos holofotes, como chefe de gabinete do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Há quatro dias, Dilma Rousseff deu-lhe uma ordem sem direito a réplica: "Gilbertinho, passe um Gumex no cabelo e ponha um terno bem bonitinho porque vou anunciá-lo na sexta-feira como ministro da Secretaria-Geral da Presidência."

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As horas se passavam e nada de anúncio. Até que, muito tempo depois de ter lido um salmo do Evangelho de Cada Dia – prática adotada desde 2003, antes de iniciar o expediente –, Carvalho telefonou para a presidente eleita. "Você me deve um vidro de Gumex", cobrou ele, rindo. Foi quando Dilma leu para o futuro ministro a nota, que acabara de ser redigida, oficializando sua indicação. "Eu tardo, mas não falho", disse ela.

Na noite de sexta, Carvalho recebeu o Estado em seu gabinete no Planalto, decorado com fotos de seus cinco filhos – dos quais duas meninas adotivas – e imagens de São Francisco e do Espírito Santo. O homem que será ouvidor dos movimentos sociais ficou com os olhos marejados ao falar do apoio dado a ele por Lula quando teve de depor na CPI dos Bingos, em 2005, e garantiu que Dilma não será refém de partidos.

Diante das cotoveladas entre o PT, o PMDB e outros aliados por cargos no primeiro escalão, Carvalho pediu que todos mantenham a calma. "Ninguém engana a Dilma nem deve achar que na base do grito vai levar alguma coisa", avisou. "A pior coisa que tem é botar a faca no pescoço dela."

A Secretaria-Geral da Presidência vai mudar de perfil no governo Dilma?

Até se pensou nisso, mas a conclusão foi a de que a secretaria deveria permanecer com a mesma natureza, que é o trabalho de articulação e diálogo com os movimentos sociais no seu amplo espectro. Aí estão incluídos os movimentos sindicais, movimento popular, ONGs, igrejas...

O presidente Lula sempre diz que os movimentos sociais salvaram o governo dele. Por quê?

Ele se refere à questão de 2005, quando houve aquela ameaça de impeachment. Uma vez ele falou para mim: "Esses caras falam de impeachment porque não sabem da minha relação com o povo." Mas eu diria que os movimentos salvaram o governo em outro aspecto também. Esse diálogo, que em geral é tenso, permitiu a Lula ter novos projetos, como o ProUni.

É justa a reivindicação de salário mínimo de R$ 580?

É papel das centrais sindicais reivindicar, tensionar com o governo. Eu diria que justo seria um salário mínimo talvez de R$ 1, 5 mil, do ponto de vista de uma vida digna e decente para todos os brasileiros. O governo, por seu turno, tem de ver o que pode fazer sem irresponsabilidade. Temos um acordo com as centrais de um reajuste permanente do mínimo. Não adianta dar aumento muito acima e no ano seguinte ter de recuar porque isso pode provocar crise na economia, nas prefeituras.

O sr. é um dos últimos sobreviventes do núcleo duro do governo Lula. Como é o presidente na intimidade?

É uma pessoa muito boa de lidar, que vai deixar saudade. É duro, muito duro. Às vezes fico com pena dos ministros que recebem certos telefonemas dele. Fico com pena de mim mesmo (risos). Acho que fui o cara que mais apanhou nestes oito anos aqui, até pela proximidade. Para azar nosso, ele tem uma memória prodigiosa.

Cobra resultados?

Cobra. E sem misericórdia. Mas, ao mesmo tempo, é o cara que dois minutos depois já esqueceu aquilo e é superafetuoso. Tem um episódio que nunca vou esquecer na minha vida.

Qual?

Foi quando eu fui exposto, na CPI dos Bingos (em 2005), por causa da questão de Santo André. O presidente sabia da maldade de tudo aquilo, um jogo político, mas podia ter se livrado de mim. E houve um dia em que teve aquela acareação com os irmãos do Celso Daniel (prefeito assassinado de Santo André). Lula ia viajar às 18 horas. Eu cheguei de volta do Congresso lá pelas 19 horas e ele estava na minha sala me esperando. Atrasou a viagem, passou a mão na minha cabeça e falou: "Gilbertinho, você não tem uma cachacinha pra gente tomar aí, não?" Um cara desses você morre por ele. Sou um privilegiado.

Como o sr. explica ter se tornado réu em processo de corrupção na Prefeitura de Santo André?

Sou réu num processo civil a partir de denúncia feita por um dos irmãos do Celso, dizendo que eu contei para ele que levava dinheiro para o José Dirceu. Não tem prova nenhuma. É doloroso para mim ser acusado de uma coisa que não devo. Eu faço 60 anos em janeiro e meu capital não chega a R$ 300 mil.

Quais as diferenças de estilo entre Lula e Dilma?

A diferença mais forte é essa questão do carisma e da relação com o povo. Dilma é uma militante que veio da classe média, que participou da luta social e foi se aproximando aos poucos dos movimentos. Bem antes da eleição, ela dizia que, mesmo que nada desse certo, o presidente tinha lhe dado um grande presente.

Que presente?

Era justamente essa aproximação com o povo. Ela dizia que tinha medo de ser uma relação demagógica, essa coisa de abraçar criancinha, mas que se sentiu emocionada ao se aproximar das pessoas. Isso a fez mudar por dentro. E a Dilma é uma pessoa muito sensível. Um dia, quando ela era ministra de Minas e Energia, estávamos conversando sobre poesia e no dia seguinte me trouxe as obras completas de Adélia Prado.

Agora, ao indicá-lo para ministro, ela lhe fez algum pedido especial?

Na primeira conversa mais clara sobre a Secretaria-Geral, há uns dez dias, ela falou: "Gilbertinho, preciso de você para me dizer as verdades. Você vai ficar do meu lado criticando, falando as coisas com clareza. Preciso de você me trazendo a sensibilidade dos movimentos sociais." Fiquei muito animado.

O fato de a futura presidente não ter traquejo político não pode torná-la refém dos partidos, principalmente nessa disputa por cargos entre o PT e o PMDB?

Quero dizer que não convém nunca subestimar a Dilma. Quem o fez quebrou a cara na campanha eleitoral. Ela mostra uma capacidade de aprendizado e de habilidade política surpreendentes. Ninguém engana a Dilma nem deve achar que na base do grito vai levar alguma coisa. A pior coisa que tem é botar a faca no pescoço dela porque aí a reação é mais dura. Ela não será refém. Aliás, é fundamental que ela tenha essa ligação fortíssima com os movimentos sociais, que pode funcionar como contraponto a esse tipo de pressão.

Mas na montagem do novo governo já houve um curto-circuito, quando o governador do Rio, Sérgio Cabral, anunciou o ministro da Saúde e teve de recuar, depois de uma rebelião no PMDB...

E você viu qual foi a atitude dela, não é? A Dilma tem essa vantagem, é muito transparente. É natural que haja tensões. Agora, se fosse atender a todas as demandas, teríamos de ter uns 60 ministérios...

O presidente sugeriu a Dilma que mantivesse muitos ministros. Isso não deixa a nova gestão com cara de governo antigo?

Eu sou testemunha de muitas conversas entre os dois. Quando a Dilma pergunta, ele dá opinião. Mas Lula age com muito cuidado e tem opiniões diferentes de algumas das nomeações que ela fez.

Em que cargos?

No Banco Central, por exemplo. É verdade que o governo Dilma tem um pouco da cara do governo Lula. Agora, você sabe que o ministério que começa não é o que termina. É natural que, aos poucos, Dilma vá dando cada vez mais a feição dela ao governo.

Lula sentirá falta do Planalto?

Ah, sim, está muito mais emotivo. Outro dia quando o Franklin (Martins, secretário de Comunicação Social) lembrou que era 1.º de dezembro, ele deu um grito. "Não, não, não. Não fale isso!", disse. Lula vai sentir muita falta. Ele se preparou para isso e adora ser presidente. Para deixar, vai ter síndrome de abstinência (risos).

Ele disse a José Dirceu que vai desmontar a farsa do mensalão. O que significa exatamente isso?

Lula quer fazer, fora da Presidência, uma análise detalhada do que foi, de fato, aquele processo. Quando fala em farsa do mensalão é porque está convencido de que nunca foi dado dinheiro para alguém votar com o governo. Ele não nega erros e problemas de uso de recursos. Nega o nome mensalão. E sempre disse: "Quem comprou voto foi o Fernando Henrique na reeleição."

QUEM É

* É formado em filosofia pela Universidade Federal do Paraná. Estudou Teologia, trabalhou como soldador em Curitiba e morou em favela para vivenciar a experiência de Jesus entre os pobres. Foi secretário de Comunicação (1997-2000) e de Governo (2001) da Prefeitura de Santo André. Ocupou vários cargos no PT, entre eles o de presidente do diretório no Paraná (1987-89) e secretário-geral (1993-95). É chefe de gabinete de Lula desde 2003.