Em entrevista à ISTOÉ, Cesare Battisti fala de comunismo, guerrilha, arrependimento, inimigos, erros, perseguições e fugas
Por Luiza Villaméa
ISTOÉ - Como é ser o pivô de uma crise entre o Brasil e a Itália?
Cesare Battisti - Eu, sinceramente, não acredito que tudo isso esteja acontecendo.É enorme, é exagerado. Eu não sou essa pessoa tão importante. Sou um dos milhares de militantes italianos dos anos 1970. Sou um das centenas de militantes que se refugiaram no mundo inteiro, fugindo dos anos de chumbo da Itália. Por que tudo isso comigo?
ISTOÉ -O sr. teme que o Brasil volte atrás, por causa da reação forte da Itália?
Battisti - Não. A decisão do ministro Tarso Genro é bem fundamentada. Ele analisou todos os documentos. Não foi uma leitura superficial. E a perseguição política está provada nos documentos.Acho que o gesto do ministro Genro foi de coragem e de humanidade. A decisão é muito importante não só para mim, Cesare Battisti, mas para a humanidade. A Itália precisa reler a própria história. Nós estamos dando à nação italiana a possibilidade de reler sua história com serenidade, humanamente.
ISTOÉ - Junto com a reação italiana, reapareceu um antigo companheiro seu, Pietro Mutti, dizendo que o sr. participou da morte de um joalheiro e de um policial. O sr. matou estas pessoas?
Battisti - De jeito nenhum. Está muito longe da realidade. Na época desses assassinatos eu nem fazia mais parte dos PAC.
ISTOÉ - O sr. matou alguém?
Battisti - Eu nunca matei ninguém. Eu nunca fui um militante militar em nenhuma organização. Nem na Frente Ampla nem nos PAC, onde fiquei dois anos, entre 1976 e 1978. Saí dos PAC em maio de 1978, depois da morte de Aldo Moro (o ex-primeiro-ministro da Itália sequestrado e morto pelas Brigadas Vermelhas). Na época, milhares de militantes abandonaram os movimentos de luta armada. Foi um momento de debate muito importante na Itália.
ISTOÉ - O sr. repetiria que não matou ninguém na frente de Alberto, o filho do joalheiro Pierluigi Torregiani, que está na cadeira de rodas em consequência de um atentados dos PAC? Ele faz parte da campanha contra o sr. na Itália.
Battisti - É lamentável o que está fazendo o Alberto Torregiani. Ele sabe que eu não tenho nada a ver com isso. Porque eu já troquei muitas cartas com ele. Uma correspondência de amizade, de sinceridade e de respeito. Mas o Alberto Torregiani sofre pressão por parte do governo italiano porque ele, depois de tantos anos de luta, coitado, conseguiu uma aposentadoria como vítima do terrorismo. Desde 2004, tem uma pensão como vítima dos anos de chumbo na Itália. Eles estão fazendo pressão, já que podem tirar a pensão dele.
ISTOÉ - Por que o sr. entrou em contato com Alberto Torregiani?
Battisti - Sempre me sensibilizei com a situação do Alberto. Ele era um adolescente na época do atentado. Ao reagir ao ataque, o pai acabou acertando o filho, que ficou paraplégico.
ISTOÉ - E o Pietro Mutti, como o sr. entende a manifestação dele, depois de anos de silêncio?
Battisti - Ele repetiu, palavra por palavra, o que falou para o procurador Armando Spataro, em 1981. E, como outros "arrependidos", ele havia falado sob tortura. Agora, não posso afirmar que ele não foi ressuscitado pela máquina do governo italiano. Mas, mesmo se ele tiver reaparecido de verdade, ele não poderia fazer outra coisa senão repetir exatamente o que exige o procurador conhecido por ter chefiado o esquema de tortura na região de Milão. Naquela época, a tortura fazia parte do cotidiano da Itália. A Itália tem de reconhecer isso. Mas não pode. Porque a Itália é Europa. E a Itália não pode admitir que nos anos 1970 viveu uma guerra civil.
ISTOÉ - Mas era uma democracia. Não era uma ditadura.
Battisti - Havia uma democracia na qual a máfia estava no poder. Nós temos um primeiro-ministro que ficou décadas no poder e foi condenado por ser mafioso. Estou falando de Giulio Andreotti (líder do Partido Democrata-Cristão italiano, primeiro-ministro nos períodos de 1972-1973, 1976-1979 e 1989-1992). Havia também os fascistas, que nunca foram afastados do poder. E hoje, infelizmente, voltaram.
ISTOÉ - Na semana passada, uma mulher identificada como sua ex-namorada Maria Cecília B. disse na mídia italiana que o sr. confessou a ela o assassinato de um agente penitenciário.
Battisti - Maria Cecília Barbeta, que nunca foi minha namorada, foi uma colaboradora da Justiça. Era o que chamavam de colaboradora secundária, que confirmava detalhes para sustentar uma acusação.
ISTOÉ - E ela pertencia aos PAC?
Battisti - Eu nunca tive conhecimento disso. Acho que não. Era da Frente Ampla, na região de Veneza. Devem ter pedido a ela que confirmasse um detalhe. Aí, ela disse que numa noite eu confessei ser o assassino do agente penitenciário.
ISTOÉ - Quantos integrantes tinham os PAC?
Battisti - Na época em que fiquei nos PAC, entre 1976 e 1978, eu não conhecia todo o grupo, em nível nacional. Mas acho que tinha pelo menos umas 200 pessoas ativas, mas os PAC existiram até 1979. Tinha também grupos de apoio.
ISTOÉ - Qual era o seu papel nos PAC?
Battisti - Os PAC tinham um jornal, Senza galera. Significava "sem cadeias". Cadeias no sentido mais amplo, de Michel Foucault, a favela, o gueto. Eu entrei para colaborar com este jornal. Mas comecei a fazer política ilegal muito jovem, com 15, 16 anos. Participei de todas as lutas. Na época tinha luta para o divórcio, o aborto, para a redução das tarifas de eletricidade. Tinha também a luta pela legalização da maconha. Era uma época especial. E comecei a me interessar por política dentro de casa.
ISTOÉ - Como?
Battisti - Eu sou filho e neto de comunistas. Quando tinha dez anos, andava com meu irmão, com toda a família, com um cravo vermelho na roupa. Era uma enfermidade em toda a casa. Ser comunista naquela época não era tão fácil. Na escola, quando criança, eu tinha problemas com isso, porque a Igreja Católica não era muito tolerante com os comunistas.
ISTOÉ - E sua família?
Battisti - Minha mãe era católica, muito crente. Meu pai, não, mas era tolerante em relação à Igreja. E tínhamos muitos santos em casa. E havia também um quadro de Stálin. Quando eu era criança, com sete, oito anos, eu achava que Stálin era santo também. Um pouco estranho, por causa do bigode, mas eu era uma criança. Entrei cedo na juventude comunista. Depois, saí do partido comunista e entrei no que era o movimento de extrema esquerda da época.
ISTOÉ - E, pouco depois, o sr. foi preso pela primeira vez.
Battisti - Nessa época, nós financiávamos os movimentos com furtos, pequenos assaltos.
ISTOÉ - O sr. chegou a ser condenado por assalto à mão armada?
Battisti - Fui, por assalto a uma mansão, na região de Roma. Era na Frente Ampla. Todo mundo praticava ilegalidades nesta época. Chamávamos de expropriações proletárias. Não eram, claro, furtos contra pobres. Eram alvos escolhidos. Era uma prática generalizada. Servia para financiar nossos cartazes, jornais e pequenas revistas. As primeiras rádios livres, por exemplo, foram financiadas por atividades ilegais.
ISTOÉ - E por que o sr. resolveu vir para o Brasil?
Battisti - Eu morei dez anos no México. Fui fundador de uma revista e de uma bienal de artes gráficas. Sabia que no Brasil existiam muitos refugiados italianos. Eu tinha contato com alguns deles. Eles passavam muito bem. Tinham família, tinham trabalho. Estavam integrados. O povo brasileiro é parecido com o italiano.
ISTOÉ - Mas por que o Brasil em 2004?
Battisti - Não foi uma fuga, não foi uma escolha de verdade.
ISTOÉ - O sr. tinha apoio no Brasil?
Battisti - Tinha o contato do Fernando Gabeira. Não o conhecia pessoalmente, mas tínhamos amigos em comum. Tinha também outros endereços que nunca usei, como o do Ziraldo, o escritor. Gabeira foi muito receptivo comigo. Eu não falava português, mas ele falava francês e italiano. Foi uma grande ajuda para mim, psicologicamente.
ISTOÉ - Financeiramente também?
Battisti - Não, ele me deu ajuda psicológica. Eu vivia dos direitos autorais dos livros que tenho publicado na França. E, desde que cheguei ao Brasil, já escrevi outros três livros. O último, eu preciso revisar para entregar para a editora. É uma continuação de Minha luta sem fim, que foi publicado no Brasil.
ISTOÉ - Como foi a sua vinda para o Brasil? Operacionalmente, como se deu?
Battisti - Uma parte da França me ajudava. Havia um grande movimento popular, intelectual, que se manifestou a meu favor. E neste momento existiam também alguns membros do governo, que não posso citar os nomes, que haviam se comprometido conosco, refugiados italianos. Eles estavam com dificuldade de aceitar que a França renunciara à palavra dada.
ISTOÉ - Eles integravam os serviços de segurança da França?
Battisti - Eram pessoas do serviço secreto. Deste pessoal chegou a orientação para eu abandonar a França. A ideia de minha fuga para o Brasil foi de um integrante do serviço secreto da França. No escritório de meus advogados franceses, um deles me disse que a Itália estava pressionando, por causa das denúncias que eu fazia em meus livros. E ele me falou do Brasil, lembrou que havia muitos refugiados italianos no Brasil. Eu, por minha vez, me lembrei de tudo que tinha ouvido falar sobre o Brasil quando vivi no México.
ISTOÉ - E como essa saída se concretizou?
Battisti - Uma semana depois, ele mandou outra pessoa me entregar um passaporte, italiano, com minha foto e meus dados.
ISTOÉ - E foram eles que organizaram sua vinda para o Brasil?
Battisti - Não. Eu fui de carro da França para a Espanha e Portugal. De Lisboa, fui para a Ilha da Madeira. De lá, fui de barco até as Ilhas Canárias. Nas Canárias, peguei um avião para Cabo Verde e, em seguida, para Fortaleza.
ISTOÉ - O sr. tinha algum contato em Fortaleza?
Battisti - Não, mas lá aumentaram as minhas suspeitas de que havia uma informação cifrada no código de barra do meu passaporte. Em todos os lugares, alguém sabia que eu estava chegando. Em Fortaleza, foi na fila do controle de passaporte. Faltava pouco para a minha vez. Chegaram três pessoas. Uma delas, uma mulher, falava francês perfeitamente. Falou que precisava ativar o código de barras de meu passaporte. Me levaram para uma sala, me convidaram para um cafezinho e, depois de dez minutos, me devolveram o passaporte.
ISTOÉ - O sr. acredita então que foi monitorado no Brasil?
Battisti - Durante dois anos e meio, fui constantemente monitorado.
ISTOÉ - Por quem?
Battisti - Por brasileiros e pelos franceses. Sempre. Acho que em algum momento entraram também os italianos.
ISTOÉ - Mas, se o sr. não tem importância, como disse, por que esse monitoramento?
Battisti - Não sei. Fico me perguntando o porquê e os custos. Quem estava financiando isso aí?
ISTOÉ - O que sobrou da militância?
Battisti - Eu continuo sendo um comunista de verdade, não no sentido partidário. As minhas ideias não mudaram. Continuo pensando que tem muita injustiça social, que a humanidade tem ainda muito a fazer para se desenvolver. Minha maneira de intervir nisso é através da escrita, do voluntariado. Na França, dei cursos de escrita para presos, ajudei a montar bibliotecas em comunidades carentes. Por meio dessas atividades, eu continuo minha militância.
ISTOÉ - E como o sr. avalia a luta armada?
Battisti - A luta armada foi um erro. Agora não acredito que se possa fazer uma revolução pelas armas. Eu nunca atirei em ninguém, mas usei armas em operações para o financiamento das organizações.
ISTOÉ - Se o sr. olhasse para trás e pudesse alterar algo em sua vida, o que mudaria?
Battisti - Eu não mudaria minhas ideias, mudaria os meios para alcançar os resultados. Nunca acreditei que se podia mudar o mundo matando pessoas. Nem quando entrei nos PAC, porque a organização não incluía a morte de pessoas em suas diretrizes. Os PAC se diferenciavam das Brigadas Vermelhas e de outras organizações por esta razão. E foi este o motivo de minha ruptura com os PAC depois da morte de Aldo Moro. Os PAC defenderam a morte de Aldo Moro.
ISTOÉ - O sr. se lembra da última vez que se encontrou com Pietro Mutti?
Battisti - Foi horrível. Porque eu saí da prisão em um momento de derrota total. Estávamos em 1981. Só alguns fanáticos acreditavam ainda que se podia fazer algo com as armas na Itália. Quase todos os chefes de organizações - na Itália eram mais de 100 grupos armados - estavam presos. Na cadeia, nos reuníamos. Para nós, a ofensiva armada tinha acabado.
ISTOÉ - Mas o sr. não foi resgatado desta prisão por uma operação armada?
Battisti - É. Eu não saí sozinho. Fui escolhido para ser libertado por meio de uma ação pesada, durante a qual não se usou violência física contra ninguém, com uma missão. Falar com Pietro Mutti e outros chefes de organizações para deixar a iniciativa armada, fazer uma retirada estratégica, me reintegrar na Frente Ampla e continuar as ações de financiamento para sustentar os que estavam na clandestinidade e também os que estavam presos.
ISTOÉ - E como se saiu nesta missão?
Battisti - Esta missão foi um desastre. O Pietro Mutti estava sob uma pressão terrível, tinha sob suas ordens jovens de 18, 20 anos, pelos quais ele se sentia responsável. Brigamos. Esse último encontro foi uma grande briga durante a qual eu joguei um cinzeiro na cara de uma militante que me chamou de traidor. Porque eles acharam que eu sairia da cadeia falando em Che Guevara e na luta pelas armas. E eu cheguei dizendo que tudo estava acabado.
ISTOÉ - O sr. desenvolve algum trabalho na cadeia?
Battisti - Eu estou acabando meu terceiro livro. O segundo, que está no computador, é Ser Bambu. O terceiro se chama Ao Pé do Muro. É uma trilogia, uma continuação.
ISTOÉ - Então é autobiográfico?
Battisti - É autobiográfico, mas é um pouco diferente do primeiro. Agora já retomei um pouco meu estilo de romance.
ISTOÉ - O sr. escreve à mão ou no computador?
Battisti - À mão.
ISTOÉ - Como reage à repercussão internacional de seu caso? É mais difícil lidar com o cotidiano da cadeia?
Battisti - Agora tenho assistência psiquiátrica e estou tomando antidepressivo.
ISTOÉ - Mas o sr. parece animado. É a perspectiva de ser libertado?
Battisti - Um pouco e fiquei animado com sua entrevista. Mas a pressão é enorme. Cada vez que penso nisso, não acredito que esteja acontecendo comigo.
ISTOÉ - Vê as notícias a seu respeito na TV?
Battisti - Fala-se muito sobre meu caso. E os outros presos têm muita solidariedade. Nunca tive problemas nem com os presos, nem com os agentes.
ISTOÉ - Há uma acusação de que o sr. matou o comandante de uma cadeia, os agentes penitenciários aqui sabem disso?
Battisti - Acho que sim. Mas atualmente estou sendo tratado muito bem, com respeito. E os agentes me tratam como qualquer outro preso.
ISTOÉ - Como encara a decisão final que está para sair do Supremo?
Battisti - O Brasil me concedeu meu refúgio político. O procurador-geral da República deu parecer favorável ao refúgio. Acho que o Supremo irá na mesma direção, que já tomou em outros casos.
ISTOÉ - O sr. está tranquilo ou ansioso?
Battisti - Não estou tranquilo porque a pressão é enorme. Está arrebentando comigo. As notícias, a mídia, eu não estou preparado para isso. Agora, uma coisa me surpreende de um lado: porque essa mídia que está fazendo todo esse barulho não se pergunta por que há essa reação exagerada da Itália. Essa histeria da Itália. Por que está acontecendo comigo? Por que o presidente e os ministros italianos estão reagindo dessa maneira pessoal?
ISTOÉ - A primeira-dama da França, Carla Bruni, interveio a seu favor?
Battisti - Eu acho isso uma mentira. E acho que a Carla Bruni não teria porque intervir a meu favor.
ISTOÉ - Mas nos documentos encaminhados ao Conare, consta que a irmã dela, Valerie, interveio no passado.
Battisti - Não sei. Ela declarou isso oficialmente?
ISTOÉ - O sr. conversa sobre sua situação com suas filhas?
Battisti - Sim. Sim.
ISTOÉ - É difícil para elas?
Battisti - Não. Porque nunca escondi minha vida. Desde criança, cresceram, conhecendo tudo pouco a pouco.
ISTOÉ - Mas na imprensa internacional o sr. é um terrorista, assassino.
Battisti - Na Itália, não estão todos contra mim, na França, muitas pessoas estão a meu favor. Muita gente não acredita que sou terrorista ou assassino.
ISTOÉ - A Fred Vargas abre a lista dessas pessoas?
Battisti - Uma pessoa que conhece profundamente meu processo. Acho que ela conhece mais que eu. Foi a única pessoa no mundo que leu essas duas malas de processos.
ISTOÉ - Em quem o sr. se apega para continuar tocando em frente, para ter força, diante dessa pressão? O sr. tem fé em Deus?
Battisti - Sim.
ISTOÉ - Com sua formação, o sr. acredita em Deus?
Battisti - Acredito numa força superior. Na lei superior universal. Sempre. Misturo isso com minha vida e meu pensamento político. Acho que estou agindo na direção dessa força superior. Mesmo quando errei. Por exemplo, usei armas, mesmo não matando ninguém, estava num processo de violência. Mas sempre acreditei.
ISTOÉ - A que o senhor se apega nesses momentos difíceis?
Battisti - Às pessoas, às milhares de cartas que chegam para mim.
ISTOÉ - Que pessoas?
Battisti - Pessoas que não me conhecem. Muitas cartas de pessoas que eu nem imaginava que gostassem de mim, do mundo inteiro. De pessoas que conheci nos anos 70, que conheço, que sabem porque está acontecendo isso comigo.
ISTOÉ - O sr. acha que seus livros influenciam?
Battisti - Com certeza.
ISTOÉ - Livros denunciando a tortura nos anos 70?
Battisti - Denunciando o que a Itália nunca quis assumir. Na Itália existiu na guerra civil, como denunciamos para o orquestrador da repressão na época, o ex-presidente da República italiana Francesco Cossiga. Ele mandou uma carta pessoal para mim, me reconhecendo como militante político. A senhora pode ter acesso a essa carta. Ele diz que éramos um grupo revolucionário que queria tomar o poder pela via das armas num projeto socialista. Palavras do Francesco Cossiga. Será que Berlusconi, o grande mafioso, tem mais crédito do que Cossiga?
ISTOÉ - O que o sr. gostaria de fazer depois de sair da prisão?
Battisti - Neste período na cadeia, li muito, aprofundei muito o conhecimento do país, historicamente, socialmente, culturalmente. Para mim o Brasil é um país muito interessante do ponto de vista humano, do ponto de vista também profissional. Eu posso fazer muito aqui, exatamente o que fazia na França, ter muita iniciativa cultural, continuar a escrever, reunir aqui a minha família.
ISTOÉ - O sr. quer trazer a Valentina e a Charlène?
Battisti - Eu quero trazer as minhas filhas. Não estou casado. Quero trazer a mãe de minhas filhas também. A Valentina cursou biogenética. Tem projeto para ela aqui no Brasil, há muito que fazer nessa área. A biogenétia aqui no Brasil é um assunto muito importante, o mundo inteiro está olhando para o Brasil. Eu estou sonhando com isso.
ISTOÉ - O sr. tem algum lugar de preferência?
Battisti - Eu gosto muito do Rio de Janeiro. É um paraíso. É uma maravilha. Mas na verdade não sei onde vou viver. Acho que minha família vai adorar o Rio de Janeiro.
ISTOÉ - Por que o sr. demorou 16 anos para falar que não matou ninguém?
Battisti - Porque os outros que confessaram, disseram que tinham matado de verdade. Se eu me defendesse, me diferenciaria e abriria uma brecha na doutrina Mitterrand, que impunha a mesma defesa para todos. Nada de sustentações individuais, como inocência, revelia, como alegações pessoais. Eu obedeço a essa norma de conduta. Em nenhuma das etapas desse processo reivindico a inocência. Fiz um documentário sobre os anos de chumbo na Itália e essa é a causa da vingança dos poderosos políticos italianos. Eu não posso me separar. Para dizer que sou inocente, tenho que renunciar a defesa dos advogados. Fiz procuração para outro advogado, que está me defendendo na França, para poder dizer, agora alto, que não matei ninguém e fui condenado à revelia. Para isso, tive de sair da defesa coletiva.
ISTOÉ - E por isso não foi feita essa defesa pontual?
Battisti - Exato. Acho que a Itália mente. O governo italiano está mentindo. A mídia italiana, em sua maioria, pertence ao Berlusconi. Estão mentindo. Pessoas estão manipulando, ou estão deixando manipular. Nunca fui ouvido pela Justiça italiana sobre esses quatro homicídios. Nunca. Não existe. Não fui ouvido nenhuma vez num inquérito, na fase de instrução.
ISTOÉ - A França se recusou a extraditar Marina Petrella, que era da Brigada.
Battisti - Sim. A situação penal dela é muito mais pesada que a minha. Porque não fazem todo esse barulho, porque não fazem nada? Essa pessoa está sendo acusada de coisas muito mais pesadas do que eu. Porque não fazem nada? A pergunta que faço é esta: estaria disposta a Justiça italiana hoje a me ouvir pela primeira vez sobre esses quatro homicídios, antes de me enterrar vivo? A Itália estaria disposta a me ouvir uma só vez sobre esses quatro homicídios antes de me condenar, como condena a Petrella, à privação da luz solar? Privar um homem da luz solar é um homicídio.
ISTOÉ - Como é o seu cotidiano aqui?
Battisti - De manhã tem café. Os agentes passam o café às 7h10. Neste momento a gente tem que estar acordado e responder à conferência. Fico dentro da cela. Dorme-se com cela trancada. A cela é aberta para o café da manhã. A gente toma um copo de leite de soja. Tem café, mas tem que comprar na cantina. A gente passeia no pátio. Cada um se liga nas suas atividades.
ISTOÉ - E você escreve?
Battisti - Quando volto para a cela começo a preparar a cabeça para escrever. Mas, nesses últimos dias, não consigo. Há muito pressão, não consigo me concentrar.
ISTOÉ - Você tem amigos aqui?
Battisti - Somos umas 50 pessoas. Somos todos amigos. Um precisa fazer pelo outro.
ISTOÉ - À noite, vocês vão dormir a que horas?
Battisti - O banho de sol, de segunda a sexta, termina às 4 da tarde. Todo mundo volta para a cela, onde cada um faz o que quiser. Lê, vê televisão. Antes das 7h30 eu não ligo a televisão. A televisão é do preso. Meu companheiro de cela também não gosta de televisão o dia todo. Isso é bom para mim, que gosto de ler e escrever. O jornal a gente vê, às 8.
ISTOÉ - No dia 18 de dezembro você comemorou seu aniversário aqui na cadeia?
Battisti - Sim. Aqui na cadeia. Com bolo e tudo.
ISTOÉ - Quem fez o bolo?
Battisti - Não sei.
ISTOÉ - Quem fez?
Battisti - Não sei. Chegaram 10 pessoas. Foi a ex-prefeita de Fortaleza que chegou. A Maria Luiza Fontenelle. Ela e outras pessoas.