Quando os iluminados escrevem
a gente tem a obrigação de ler e divulgar.
CARTAS ÁCIDAS
FLÁVIO AGUIAR
5/1/2006
IGDA em alta
Para atacar o governo e o PT, perdeu-se a noção de qualquer limite. O que está acontecendo é a orgia do massacre, perpetrada com uma mistura de desprezo e oportunismo. É o IGDA – Índice Geral de Desfaçatez Acumulada – que está em alta, dificultando muito a leitura de jornais.
O IGDA – Índice Geral de Desfaçatez Acumulada – está em alta, o que dificulta muito a leitura de jornais hoje em dia. Para atacar o governo e o PT, perdeu-se a noção de qualquer limite. O que está acontecendo é a orgia do massacre, perpetrada com uma mistura de desprezo e oportunismo.
Cito o ministro (do STF) Nelson Jobim, que recentemente citou Nelson Rodrigues: “Os idiotas perderam a modéstia”. E por isso, acrescento eu, vêem o mundo à sua própria imagem, deuses e oráculos que se imaginam de seu próprio futuro.
Comecemos a medida do IGDA pelo Congresso Nacional. As oposições rasparam o próprio tacho para justificar a convocação extraordinária do Legislativo. Mas depois dele convocado, ninguém quer trabalhar, ficam numa embromação em torno de relatórios incompletos, ainda sem provas conclusivas (como o da CPI dos Correios), ou então numa inapetência de reuniões da Comissão de Ética que, como a dos bingos, perdeu o rumo e se afundou no labirinto do leque que abriu.
Entrementes, discute-se ad nauseam a questão hipócrita do destino dos salários extras que serão percebidos. Alguns parlamentares resolveram, porque se atrasaram(!) em pedir o não-recebimento, doar as verbas para instituições beneficientes. Mas isso, é claro, é apresentado como não tendo qualquer interesse eleitoreiro. Não! O único interesse eleitoreiro em marcha, é claro, é o do governo federal, obviamente, ao destinar verbas para tapar buracos nas estradas que os governos estaduais tiveram anos para tapar e não o fizeram.
No meio dessa confusão, a cidade de São Paulo e sua vizinhança submergem no lamaçal (aqui em sentido próprio) das chuvas de verão. O governo estadual e o governo municipal, que não se entendem por causa de uma briga antecipada sobre quem será o candidato a presidente, culpam ambos o governo federal, e um secretário municipal culpa a chuva.
Passemos aos jornais e ao noticiário. De algum tempo para cá se tornou moda achincalhar o presidente da República. Não basta criticá-lo, e motivos para isso, diga-se de passagem, existem. Não basta. Desde que alguns parlamentares ameaçaram machistamente “dar surras” no presidente, qualquer jeguelhé que tome da pena se acha no direito – até no dever – de deitar e rolar em cima dele, substituindo a crítica pela avacalhação, confundindo palavras com bengaladas.
Chama-se o presidente de palhaço, de inepto, de ser um paspalho e por aí afora. Avacalha-se com qualquer iniciativa governamental, protege-se o perfil de seus opositores. Não se pode deixar de constatar que, a pretexto de uma ira oportuna, renascem os preconceitos. Essa fúria teatral é a voz da opinião pública? Ledo engano! É a voz dos preconceitos, dos acólitos e comezinhos da Casa Grande a despejarem seu despeito sobre o “de baixo” que ousou invadir um território de que julgavam ter cadeira cativa, ou pelo menos poder sobre a catraca de entrada. Percebe-se o esforço desavisado nuns, desabrido noutros, de “ensinar à gentinha” qual é o seu lugar.
Palavras de relatórios parciais são tomadas como definitivas, indícios ou suspeitas são apresentadas como provas. Mas só isso não basta. Como os índices e resultados das políticas sociais do governo Lula são bem melhores que os de FHC, passaram a surgir sistematicamente novos relatórios e pesquisas colando FHC e Lula num contínuo de dez anos, mostrando como tudo piorou nesse período, e pondo lado a lado, em termos de avaliação, os oito anos do primeiro com os três do segundo. É de matar!
E a cada dia aumenta a chusma do que se dispõem a decretar que o PT morreu, que o governo acabou. Alguns inflam o peito e brandem a sua “desilusão” com o governo e o partido, como se isso tivesse alguma importância. Mas percebe-se, na encenação da ira de muitos, o olho no festim (o assalto ao botim) que se seguirá ao possível, provável, certo ou suposto (conforme o articulista) defenestramento de Lula do governo federal. Há um incontido afã de aparecer no santinho que consagrará o (esperado) fim do governo petista.
Mas há mais ainda. Gritam as palavras, as frases, num frenesi: esta é a maior crise da história da república! Nossa! Viraram mingau (para ficarmos só na república) a Revolução Federalista, a Revolta da Armada, a Guerra de Canudos, a do Contestado, os levantes tenentistas dos anos 20 e a Coluna Prestes, a Revolução de 30, o levante de 32, o golpe de 37, o golpe de 45, o suicídio de Vargas e a tentativa de impedir a posse de Juscelino ou de derruba-lo, a tentativa de golpe em 61 e o golpe em 64, o sobre-golpe em 68, a luta armada, o movimento das diretas-já e sua traição no Congresso e a morte de Tancredo, para dizer o mínimo.
Enquanto isso, parte da esquerda se congraça com essa desfaçatez reacionária e dela não consegue se distinguir. O que prova que é mais fácil repetir os erros do passado do que aprender com eles. Mas isso é o assunto da próxima carta.
Flávio Aguiar é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP) e editor da TV Carta Maior.