“Os
elementos que compunham o seu ser de tal forma nele se conjugavam, que a
Natureza inteira poderia levantar-se e bradar ao universo: aqui está um Homem!
(Shakespeare)
(*) Delúbio Soares
Nos anos 70,
despejados desde Caracas por voos do Concorde, os potentados da aristocracia
venezuelana invadiam as mais caras lojas de grifes de Paris. E com inimaginável
volúpia consumista compravam tudo o que encontravam pela frente. Rigorosamente
tudo. Indiferentes aos preços astronômicos e ainda não saciados plenamente no
autêntico fetiche a que se entregavam, pediam um segundo exemplar absolutamente
igual a cada peça comprada. Um segundo relógio de ouro, um segundo bracelete de
diamantes… A ironia impiedosa e certeira do semanário parisiense “Le Canard
Enchainé” os batizou com o eternizado “dame dos”.
Impulsionados
pela impressionante riqueza do petróleo e favorecidos por uma das mais
desiguais distribuições de renda do planeta, aqueles emires sem tendas ou
camelos, estavam montados nas costas de dezenas de milhões de venezuelanos
famintos que assistiam o teatro da contrafação democrática: a cada quatriênio
dois partidos conservadores se revezavam no Palácio de Miraflores, o COPEI e a
Acción Democrática (ADECO). E nos morros que circundam Caracas, e nas
periferias de Maracaibo, Cachao, Barquisimeto, Valência, Barcelona, Maturin,
Ciudad Bolívar ou outras grandes cidades, a pobreza adquiria dimensões que
contrastavam de forma gritante com a “Venezuela grande” vendida pela
farta propaganda oficial, pela poderosa Nação integrante da OPEP e a decantada
“sólida democracia” num continente então prenhe de ditaduras militares e
recorrentes atentados ao Estado de Direito.
Existia por
detrás do país rico e belo, do povo alegre e hospitaleiro, da democracia sem
arranhões desde a queda da ditadura do general Perez Jiménez no final da década
dos 50, um acordo tácito entre as elites política, econômica e social: o
petróleo financiaria um simulacro de “democracia”, um mínimo de direitos
sociais e um máximo de favorecimentos espúrios à classe dominante. Uma
cleptocracia estabeleceu-se, renovando-se a cada quatro anos sob o manto da
alternância partidária, da fortaleza constitucional e das liberdades civis. O
petróleo, absolutamente única fonte de recursos do país, financiava algumas
grandes obras públicas e a manutenção de uma máquina estatal caríssima. E, como
medida “popular”, a gasolina barata, o único e aparente ganho democratizado
também para as classes menos favorecidas.
No início dos
anos 90 a panela de pressão explodiu. Carlos Andrés Perez, voltando em um
segundo mandato e cumprindo à risca o figurino genocida do FMI (o mesmo que
seria o breviário de FHC poucos anos após no Brasil), enfrenta impopularidade
jamais vista para quem, no primeiro mandato (na década de 70) havia sido um dos
mais respeitados líderes democráticos de um continente coalhado de ditaduras
militares forjadas pela CIA. Desemprego, fome, condições miseráveis de
habitação na periferia de Caracas, crise generalizada nos mais diversos setores
da sociedade civil. E tanto Andrés Perez quanto a elite “dame dos”,
muito bem representada pela implacável e tenebrosa imprensa venezuelana, sempre
alinhada aos piores interesses e disposta a conspirar contra o país e o povo,
absolutamente indiferentes ao cenário de graves consequências que se
apresentava no horizonte.
Em meio à
balbúrdia de um país riquíssimo condenado à hecatombe, surge o jovem e corajoso
coronel paraquedista, filho de um professor e de uma dona-de-casa, natural de
Barinas, província sem maior expressão política ou econômica, mas querido por
seus companheiros de farda e famoso pelo brilho de seu curriculum no Colégio
Militar. O levante que Hugo Chávez e algumas poucas dezenas de outros jovens
oficiais tentam contra o governo desmoralizado de Andrés Perez fracassa,
levando-o a dois anos de prisão. Ainda na cadeia, antes de ser anistiado, o
desconhecido revoltoso aparecia em disparado primeiro lugar em todas as
pesquisas para a presidência da República!
O restante da
história já conhecemos. A epopeia de sua chegada ao poder no bojo de uma
votação consagradora, a fundação da República Bolivariana, o sonho generoso de
um continente unido e de uma “Pátria Grande” como queria Simon Bolívar séculos
atrás, libertando países e povos, o golpe fascista contra Chávez em 2002, sua
prisão e volta ao poder nos braços do povo em menos de 48 horas.
Há histórias
e feitos que marcaram o tempo desse homem invulgar, profundamente corajoso e de
inteligência espantosa. Sobreviverão a ele e a todos nós. Alguns foram omitidos
pela imprensa brasileira, que o combateu com a ferocidade conhecida que a nós,
petistas e aliados dos presidentes Lula e Dilma, também o faz. Um deles: os
maiores navios da PDVSA, a poderosa estatal petroleira local, eram
tradicionalmente batizados com os nomes das venezuelanas que venceram o
concurso de Miss Universo (Irene Saenz, Maritza Sayalero, e outras). Chávez
mudou essa ridicularia, escolhendo nomes de mulheres do povo, operárias,
camponesas, ou simples e anônimas mães-de-família, para substituírem tais
beldades. Uma delas, “Negra” Hipólita, justamente a que batiza o maior e mais
moderno dos superpetroleiros, foi escrava da família de Bolívar, o amamentou e
a ela o Libertador das Américas devotava respeito filial e carinho absoluto.
Outro fato omitido aos brasileiros: o bilionário militante de extrema-direita
Juan Carlos Escotet, íntimo amigo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e
dono do Banesco (um dos maiores bancos venezuelanos), tornou-se um contumaz
“plantador” de informações mentirosas contra Chávez e a política econômica de
seu governo na imprensa local. Ao vivo, via satélite e em rede nacional de TV,
Chávez o chamou em seu próprio celular, calmamente deu-lhe explicações sobre as
questões econômicas e lhe disse “meu caro, se você não der conta de tocar o
seu banco, me avise, ok? Nós o levaremos adiante”.
Chávez morreu.
Sua herança não está nos livros dos cartórios ou no bolso de seus filhos. Ela
está na vida de milhões de venezuelanos. Metade deles era formada por pobres.
Essa cifra maldita caiu em quase 50% segundo a ONU. Eles não tinham casa,
escola ou saúde. Agora tem. Eles eram massa de manobra, vista do alto do
palanque, em época eleitoral por candidatos da elite branca, racista,
aristocrática. Chávez, um deles (filho do povo, moreno, sem sobrenome
importante) chegou lá: no poder e no coração das massas.
Os “dame dos”
odeiam Chávez mais ainda, para além da morte: já há estação de metrô nos morros
de Caracas, o equivalente a nossas favelas. Mas, hoje, são menos favelas. E a
herança de Chávez está na barriga de milhões de crianças de seu país que
dormirão sem fome na noite em que ele já descansará sob a terra. A herança do
coronel atrevido está em seu fabuloso desafio à impiedosa oligarquia caraqueña,
cassando a concessão da RCTV, do aristocrático Dr. Marcel Granier e pondo fim
ao Banco Federal, do biliardário Nélson Mezerhane (ambos acostumados a darem
ordens aos presidentes que antecederam Chavez no Palácio de Miraflores).
Chávez viverá
na memória dos que o admiram e foram por ele amados. Milhões de venezuelanos
nele votaram em uma eleição dramática, guardando um autêntico segredo mútuo, de
polichinelo, sabendo que ele dificilmente sobreviveria para cumprir o mandato,
talvez sequer tomar posse. Mas, deram-lhe o voto como quem cumpre um dever para
com sua própria consciência. Os venezuelanos votaram em um Chávez doente,
depauperado, que mal caminhava, entronizado no alto de um caminhão avermelhado,
não podendo fazer um contraponto efetivo ao jovenzinho rico, reacionário e
oligarca, escolhido para enfrenta-lo e perder a peso de ouro. Mas é que Chávez
sabia e seu povo também sabia de uma verdade absoluta. Ao votarem no líder já
moribundo, votavam também na história que juntos protagonizaram. Era uma
história só deles, dispensando a intermediação antipática e nefasta de
marqueteiros, chefetes, partidos, dinheiro, governos. Era Chávez e o povo. Só
os dois. Num grande, monumental e definitivo encon
tro. O último.
O câncer
conseguiu o que os inimigos de Hugo Chávez tentaram em vão. Mas as obras de
Cárdenas, de Bolívar, de Sucre, de San Martin, de Allende, de Torrijos, de José
Martí, de Getúlio, de Artigas, de Haya de La Torre, de Perón, de Evita, se
foram com eles? Seus legados, ensinamentos, doutrinas e pensamentos sucumbiram
com a extinção física de tais estadistas? Não, mil vezes não.
A Hugo Rafael
Chávez Frias não o derrotaram no voto e nem nas idéias. Alegram-se agora, como
abutres, por seu determinismo biológico. Aos que não derrotaram o grande
líder da Venezuela, ao que mudou os rumos da história de seu povo e de seu
país, sobrou a mixórdia das notinhas maldosas, dos trocadilhos cretinos, dos
comentários irônicos, dos risinhos mal disfarçados nos enfadonhos painéis das
TVs a cabo, onde especialistas mais que desconhecidos, saídos das catacumbas do
nada, preveem o fim dos tempos, a vitória dos que sempre perdem, brigam tenazmente
contra a verdade dos fatos, abrem vírgulas sem consegui-las fechar no tempo
certo, e – fazendo muito sofrer o vernáculo – mal conseguem apontar no
mapa-mundi a localização exata da Venezuela, o que, todavia, não os impede de
já prognosticar – entre excitados e ridículos – o final do chavismo. Como o
fazem desde antes de se empanturrarem de botox…
Hugo Chávez
já não pertence ao mundo dos vivos. Aos seus familiares, partidários ou amigos.
Agora ele já é lenda e mito. Pertence à posteridade, com suas luzes e sombras.
Pertence à nobre estirpe dos que escreveram a história de seu tempo, com sua
alegria ‘criolla’, com sua ‘alma llanera’, com a imensa audácia
de sonhar seu país rico com um povo também rico, com sua surpreendente força em
tentar reviver o sonho generoso do seu tão admirado libertador Bolívar.
Que desafio
estupendo o de continuar a sonhar os sonhos revolucionários de um homem que os
transformava em realidade. Que orgulho imenso o de ter sido seu contemporâneo.
(*)
Delúbio Soares é professor