O rumoroso caso é uma chance única de reavaliar o que foi a política brasileira na última década, e de como ela – venal, hipócrita e manipuladora – foi viabilizada por um estilo de cobertura política irresponsável
Maria Inês Nassif
O rumoroso caso Demóstenes Torres (DEM-GO) não é apenas mais um caso
de corrupção denunciado pelo Ministério Público. É uma chance única de
reavaliar o que foi a política brasileira na última década, e de como
ela – venal, hipócrita e manipuladora – foi viabilizada por um estilo de
cobertura política irresponsável, manipuladora e, em alguns casos,
venal. E hipócrita também.
Teoricamente, todos os jornais e jornalistas sabiam quem foram os
arautos da moralidade por eles eleitos nos últimos anos: representantes
da política tradicional, que fizeram suas carreiras políticas à base de
dominação da política local, que ocuparam cargos de governos passados
sem nenhuma honra, que construíram seus impérios políticos e suas
riquezas pessoais com favores de Estado, que estabeleceram relações
profícuas e férteis com setores do empresariado com interesses diretos
em assuntos de governo.Foram políticos com
esse perfil os escolhidos pelos meios de comunicação para vigiar a lisura de
governos. Botaram raposas no galinheiro.
Nesse período, algumas
denúncias eram verdadeiras, outras, não. Mas os mecanismos de produção de sensos
comuns foram acionados independentemente da realidade dos fatos. Demóstenes
Torres, o amigo íntimo do bicheiro, tornou-se autoridade máxima em assuntos
éticos. Produziu os escândalos que quis, divulgou-os com estardalhaço. Sem ir
muito longe, basta lembrar a “denúncia” de grampo supostamente feita pelo Poder
Executivo no gabinete do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar
Mendes, então presidente da mais alta Corte do país. Era inverossímil: jamais
alguém ouviu a escuta supostamente feita de uma conversa telefônica entre
Demóstenes, o amigo do bicheiro, e Mendes, o amigo de Demóstenes.
Os meios de
comunicação receberam a suposta transcrição de um grampo, onde Demóstenes
elogia o amigo Mendes, e Mendes elogia o amigo Demóstenes, e ambos se auto-elegem
os guardiões da moralidade contra um governo ditatorial e corrupto. Contando a
história depois de tanto tempo, e depois de tantos escândalos Demóstenes
correndo por baixo da ponte, parece piada. Mas os meios de comunicação
engoliram a estória sem precisar de água. O show midiático produzido em torno
do episódio transformou uma ridícula encenação em verdade.
A estratégia do show
midiático é conhecida desde os primórdios da imprensa. Joga-se uma notícia de
forma sensacionalista (já dizia isso Antonio Gramsci, no início do século
passado, atribuindo essa prática a uma “ imprensa marrom”), que é alimentada
durante o período seguinte com novos pequenos fatos que não dizem nada, mas
tornam-se um show à parte; são escolhidos personagens e lhes é conferida a
credibilidade de oráculos, e cada frase de um deles é apresentada como prova da
venalidade alheia. No final de uma explosão de pânico como essa, o consumo de
uma tapioca torna-se crime contra o Estado, e é colocado no mesmo nível do que
uma licitação fraudulenta. A mentira torna-se verdade pela repetição. E a
verdade é o segredo que Demóstenes – aquele que decide, com seus amigos, quem
vai ser o alvo da vez – não revela.
Convenha-se que, nos
últimos anos, no mínimo ficou confusa a medida de gravidade dos fatos; no outro
limite, tornou-se duvidosa a veracidade das denúncias. A participação da mídia
na construção e destruição de reputações foi imensa. Demóstenes não seria Demóstenes
se não tivesse tanto espaço para divulgação de suas armações. Os jornais, tevês
e revistas não teriam construído um Demóstenes se não tivessem caído em todas
as armadilhas construídas por ele para destruir inimigos, favorecer amigos ou
chantagear governos. Os interesses econômicos e ideológicos da mídia
construíram relações de cumplicidade onde a última coisa que contou foi a
verdade.
Ao final dos fatos,
constata-se, ao longo de um mandato de oito anos, mais um ano do segundo
mandato, uma sólida relação entre Demóstenes e a mídia que, com ou sem
consciência dos profissionais de imprensa, conseguiu curvar um país inteiro aos
interesses de uma quadrilha sediada em Goiás.
Interesses da máfia
dos jogos transitaram por esse esquema de poder. E os interesses abarcavam os
mais variados negócios que se possa fazer com governos, parlamentos e Justiça:
aprovação de leis, regras de licitação, empregos públicos, acompanhamento de
ações no Judiciário. Por conta de um interesse político da grande mídia, o
Brasil tornou-se refém de Demóstenes, do bicheiro e dos amigos de ambos no
poder.
Não foi a mídia que
desmascarou Demóstenes: a investigação sobre ele acontece há um bom tempo no
âmbito da Polícia Federal e do Ministério Público Federal. Nesse meio tempo, os
meios de comunicação foram reféns de um desconhecido personagem de Goiás, que
se tornou em pouco tempo o porta-voz da moralidade. A criatura depõe contra
seus criadores.