A derrota do direitista Nicolas Sarkozy é a reafirmação do compromisso da França e dos franceses com a liberdade e a democracia
A grande Nação que se notabilizou por compromisso secular
com a liberdade, igualdade e fraternidade, virou uma das páginas mais
infames de sua história. O voto popular impediu a continuidade de um
governante reacionário e incapaz. O eterno espírito libertário de seu
povo rechaçou o governo decaído, racista e comprometido com o que há de
pior no capitalismo. A França, como na queda da Bastilha ou na
resistência ao nazismo, salvou-se por si mesma.
Já em 1948, no célebre “Doctrine Politique” (Ed. Rocheur), livro que
continua atualíssimo, o general De Gaulle assegurava: “O liberalismo
tornou-se inconcebível, insuportável para o mundo e especialmente para a
França hoje. O velho liberalismo não é o caminho econômico e social
para a França. A questão social tem de ser colocada em primeiro lugar.
Os povos têm direito de dispor inteiramente de si, não para enriquecer
oligarquias internas e externas, mas para libertar o homem”. Mais de
seis décadas depois de tão sábias palavras do herói da libertação de sua
pátria, o bravo povo francês assistia a figura pequena e menor de um
governante mesquinho e segregacionista, deslumbrado e desfrutável,
protagonizar o feio papel de bedel dos interesses mais inconfessáveis do
capitalismo selvagem, ou chamar os pobres dos subúrbios parisienses de
“escória” e os imigrantes de “gentalha”, ou, como se ainda fora pouco,
promover inédita e asquerosa perseguição religiosa aos muçulmanos e
outras minorias religiosas.
A derrota do direitista Nicolas Sarkozy é a reafirmação do
compromisso da França e dos franceses com a liberdade e a democracia, é a
condenação aos desvios de uma administração voltada para os interesses
dos grandes grupos financeiros e corporações empresariais, que – como
nunca dantes na história francesa – despenderam fortunas na vã tentativa
de manter no poder o governante fantoche e elitista.
Exatamente quando no Brasil, na Argentina, no Peru, no México e em
outros países em desenvolvimento – e mesmo na rica Inglaterra – se
discute o papel (feio e condenável) da imprensa e o comprometimento de
grande parte da mídia com interesses inconfessáveis, na França essas
forças foram massacradas. O Le Fígaro, maior jornal do país, engajou-se
de forma absurda na campanha naufragada de Sarkozy. Certamente não o fez
por mera simpatia por sua figura desprezível ou por alguma identidade
ideológica. Fê-lo, tão somente, em retribuição à autêntica vassalagem
que aquele pequeno homem pequeno sempre prestou aos maiores grupos
empresariais da França, dentre eles o que controla aquele diário. Assim
também se comportou a L’Express, a maior revista do país, que mesmo sem
ter qualquer ligação com bicheiros ou empregar jornalistas que
confraternizam e servem aos bandidos, pertence ao conglomerado Dassault,
que fabrica aviões comerciais, jatos militares, helicópteros, mísseis e
satélites, todavia, falhou em sua pretensão de fabricar um novo
mandato para seu títere.
Sarkozy perdeu, mas não perdeu sozinho. Com ele foram derrotados a
maior parte da grande imprensa francesa como, também o foram jornais e
revistas brasileiras que, abertamente, fabricaram noticiário viciado e
tendencioso, omitindo o fracasso de sua gestão e tentando desmerecer a
figura de seu principal oponente e eleito do povo francês, o líder
socialista François Hollande. Derrotada, junto com Sarkozy, também a
tacanha líder alemã, Angela Merkel, que exige dos parceiros na
Comunidade Européia tal sorte de sacrifícios e privações que consegue
recordar ao mundo uma pretensão hegemônica que levou a grande Alemanha
ao fundo do poço a pouco mais de meio século. Derrotados foram os que
creem que a Cidadania deve servir ao Estado, quando, em verdade, o
Estado existe para servir à Cidadania.
Foi derrotada a França neoliberal e racista. Foi derrotada a ‘França
para poucos’, o projeto de país excludente e direitista. Foi derrotado o
estado que funcionava em favor dos bancos, dos grandes interesses
empresariais, que penalizava a massa trabalhadora com o arrocho salarial
e o desemprego. Foi derrotada a França abjeta, do colaboracionismo
descarado e da sujeição impenitente.
Sarkozy encarnou um novo general Petáin, da vergonhosa “França de
Vichy”, acasalado com os alemães invasores e entrando para a história
como sinônimo de traição e opróbio. A história registrará que os
franceses fizeram com o marido de Carla Bruni o mesmo que com os
trânsfugas e traidores durante a ocupação nazista: o estigmatizaram, só
que nas urnas, dando cabo de um governo que não soube honrar as
tradições libertárias de seu país e nem a grandeza de seu povo
extraordinário. Não contaram para o arrogante Sarkozy, mas há dentro de
cada operário, de cada mulher, de cada estudante, de cada intelectual,
de cada cidadão francês o mesmo espírito que norteou Jean Moulin, Victor
Hugo, Louis Pasteur, Sadi Carnot, Jaures, Elouard, André Mauraulx e
tantos outros nomes que honram a velha, imorredoura e histórica França.
Agora Nicolas Sarkozy, uma espécie de tucano da Cote d’Azur,
desalojado pelo voto do histórico Palácio do Eliseu, por onde passaram
Estadistas do porte de Charles de Gaulle, Georges Pompidou e François
Miterrand, terá muito tempo para refletir sobre o péssimo exemplo que
deu ao mundo com seu governo impopular e elitista, sem a necessidade de
esconder no bolso seu inacreditável relógio de R$ 160 mil...
Que a grande jornada cívica dos franceses, elegendo líder capaz e
altivo como o presidente François Hollande, sirva de exemplo e
advertência: não se governa sem o povo, longe do povo ou contra ele. A
história é escrita por essa gente anônima, obscura e sofrida, dos
subúrbios, das fábricas, dos campos, das escolas, das ruas. A história é
protagonizada pela “gentalha”, pela “escória”, por esse povo magnífico
que derrubou a Bastilha, expulsou os exércitos de Hitler e derrotou
Sarkozy.
(*) Delúbio Soares é professor
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