Delúbio
Soares (*)
“Jango
caiu por suas qualidades, não por seus defeitos”
(Darcy
Ribeiro)
Quase meio século depois de sua deposição por um golpe militar que
infelicitou o Brasil por mais de duas décadas, o presidente João Goulart é alvo
de justo e merecido processo de revisão histórica. Tanto o seu governo quanto
sua figura de homem público, ambos tão atacados e caluniados, começam a ser
mais estudados e melhor compreendidos pelos brasileiros, submetidos a processo
de desinformação e manipulação de fatos históricos durante longo tempo tanto
pela mídia conservadora quanto pelos adversários políticos e ideológicos do
saudoso líder trabalhista.
Nada se poupou ao longo dos anos de ditadura para enxovalhar a honra e
denegrir a imagem de Jango. Fazendeiro rico, foi apontado como chefe de um
governo com tendências marxistas, ou, simplesmente, “comunista”. Acusavam-no de
pretender a instalação de uma absurda e impossível “República sindicalista”,
mas jamais se deram ao trabalho de explicar o que seria isso. Pintaram-no como
um desastre administrativo, quando, na verdade, o seu governo tem um grande
acervo de realizações profícuas em benefício do Brasil e dos brasileiros.
Jango foi um dos políticos mais consequentes e responsáveis de nossa
história. Eleito com extraordinária votação direta para a vice-presidência,
após a renúncia de Jânio Quadros aceitou o regime parlamentarista, diminuindo
seu poder e atribuições em nome da pacificação nacional. Durante sua gestão,
não perseguiu adversários políticos, não discriminou Estados governados pela
feroz oposição, tendo – inclusive – vários de seus ministros recrutados nas
fileiras dos partidos que lhe davam combate incessante no Congresso Nacional.
No relativamente breve mandato de João Goulart, alguns dos nossos
melhores homens públicos integraram o seu governo, auxiliando-o em importantes
realizações em benefício do país. Santiago Dantas, Tancredo Neves, Armando
Monteiro Filho, Waldir Pires, Evandro Lins e Silva, Hermes Lima, Darcy Ribeiro,
Anísio Teixeira, Celso Furtado, Josué de Castro, Carvalho Pinto, Ulysses
Guimarães, Franco Montoro, Roberto Campos, Walther Moreira Salles, Almino
Afonso, Antônio Balbino, Osvaldo Lima Filho, Renato Archer, Alfredo Nasser,
Eliezer Batista, Virgilio Távora, José Ermírio de Moraes, João Mangabeira,
Miguel Calmon, Paulo de Tarso, Wilson Fadul, Amaury Silva, Araújo Castro,
Afonso Arinos, Expedito Machado e Gabriel Passos, dentre outros de igual valor,
foram ministros, embaixadores ou auxiliares diretos do presidente Jango. Foi a
primeira vez na história do Brasil que se montou uma equipe governamental de
altíssima qualidade, autêntica constelação de brasileiros brilhantes.
A SUDENE, a lei de telecomunicações, a Embratel, a lei de remessa de
lucros, o “Plano Trienal” (importante programa idealizado e desenvolvido por
Santiago Dantas e Celso Furtado, que incluía uma série de reformas
institucionais que enfrentavam os graves problemas estruturais de então), os
primeiros passos na solução da questão agrária, a encampação de refinarias de
petróleo nas mãos de grupos econômicos nacionais e estrangeiros, a modernização
e fortalecimento da Petrobrás e uma política externa independente e alinhada
com os países em desenvolvimento, são parte do extenso legado de João Goulart e
seu profícuo período de governo.
Jango teve a coragem cívica de enfrentar a dura realidade de ser o
presidente rico de um país pobre, lutando pela implantação das reformas de
base. Elas, que fundamentalmente provocaram a reação extremada do
conservadorismo, ainda hoje, 50 anos depois, se fazem necessárias e assumem
contornos de urgência. São a Reforma Agrária, a Reforma Fiscal, a Reforma
Urbana, a Reforma Educacional,
a Reforma Eleitoral e a Reforma Financeira. Eram medidas inadiáveis,
entretanto, foram rechaçadas no Congresso Nacional, combatidas pela grande
imprensa, boicotadas por organismos como o IPES e o IBAD, financiados pelos
piores interesses nacionais e estrangeiros, que apostavam na desestabilização
do governo de Jango e no fim do regime democrático em nosso país.
Se Jango
governou reafirmando seu notório compromisso com as classes trabalhadores –
aquele mesmo que o fez, como Ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, aumentar
em 100% o salário mínimo – ele também foi combatido do primeiro ao último dia
de seu governo com imensa fúria numa guerra sem quartel. Mas foi, justamente,
dos quartéis que partiu a iniciativa de rasgar a Constituição, pisotear as
garantias individuais, cassar mandatos e suspender direitos políticos, revogar
o estado de direito democrático, conspurcando o papel das Forças Armadas e
estabelecendo o mais longo e tenebroso período de exceção de nossa história.
No pior de seus momento, Jango agiu com patriotismo e dignidade. Podendo
resistir, contando com a lealdade do III Exército, sediado em Porto Alegre,
recusou qualquer possibilidade de manutenção do poder à custa do derramamento
de sangue de seu povo. Tendo recebido o oferecimento do general Amaury Kruel,
seu compadre e comandante do poderosíssimo II Exército, sediado em São
Paulo, de ser defendido, e provavelmente salvando seu governo, à custa de
dissolver a UNE, a CGT e fechar os sindicatos de trabalhadores, João Goulart
preferiu cair com dignidade e honradez.
Primeiro e único de nossos presidentes a morrer no exílio, impedido de
voltar ao país que tanto amou, Jango foi reabilitado pela história. No décimo
aniversário de sua morte, em 1976, o professor Moniz Bandeira lançou livro da
maior importância, “O governo João Goulart”, relembrando ao Brasil e mostrando
às novas gerações sua expressiva obra política e administrativa. Uma década
depois, o talentoso cineasta Silvio Tendler emociona o Brasil com “Jango”,
documentário de enorme sucesso onde relata sua trajetória. E agora, já em sua
terceira edição, a competentíssima e isenta biografia de João Goulart escrita
pelo historiador Jorge Ferreira, professor da Universidade Federal Fluminense,
resgata a figura do grande brasileiro.
Histórica é a figura de João Belchior Marques Goulart, grande fazendeiro
que tentou fazer a reforma agrária; Ministro do Trabalho que caiu por reajustar
corretamente o salário dos trabalhadores; vice-presidente eleito por voto
direto que, para assumir a investidura que lhe cabia constitucionalmente, abriu
mão do presidencialismo e reduziu seus poderes; presidente que enfrentou nossos
mais agudos desafios e pensou generosamente um país mais justo e democrático e,
por isso, caiu e foi exilado.
Deposto, exilado, perseguido, caluniado, impedido de voltar ao país que
tanto amou e ao qual serviu com honradez e dignidade, João Goulart foi
absolvido pela história. E isso é o que importa.
(*) Delúbio Soares é professor