Gilberto Carvalho fala sobre piores e melhores dias do governo
Numa sala quase colada à do presidente Lula, no terceiro andar do Palácio do Planalto, o petista paulista Gilberto Carvalho presenciou, nos últimos oito anos, os piores e os melhores momentos do governo.
Viu de tudo um pouco e levou as maiores broncas de Lula, o amigo que o chama carinhosamente de Gilbertinho. Amigo que Gilberto conhece tanto e tão bem que arrisca afirmar: “ Se houver dificuldades, e ele for a solução para a gente ter uma vitória (em 2014), ele pode voltar”.
Em janeiro, Gilberto troca de sala. Ficará mais distante do gabinete presidencial, mas nem por isso terá mais tranquilidade. Petistas brincam que ele será “o olho” de Lula na casa de Dilma. Com calma e tranquilidade típicas de ex-seminarista, diz que, como secretário-geral da Presidência, será apenas “o olho de Dilma nos movimentos sociais”.
Nesta entrevista ao GLOBO, concedida quinta-feira à tarde em seu gabinete, confessa que, no auge do mensalão, foram muitos os dias em que se achava por ali que Lula não terminaria o mandato. E diz também que 2014 está aberto para Lula: dependerá da gestão de Dilma.
O que muda na rotina do Planalto com a saída de Lula e a chegada de Dilma Rousseff?
A gente vai perder a coisa muito espontânea, calorosa do presidente. Ele, o tempo todo, até quando dá broncas — e não são poucas nem fáceis —, em seguida faz uma brincadeira, uma gozação.
O senhor levou muitas broncas?
Muitas. Uma vez, no primeiro mandato, estava com um grupo de ministros na sala. Eu havia preparado a agenda do dia seguinte. Ele tinha pedido para colocar (uma audiência) na parte da manhã, mas joguei para a tarde e precisava mostrar a ele. Ele me deu um grito fora do tom na frente dos ministros. Devia estar com outra coisa na cabeça. Falou uma barbaridade: “isso é uma incompetência. Não é possível que você não aprenda”. Fiquei emputecido. E pensei: “Eu te pego”. Mas não podia reagir ali, na frente dos ministros.
E ficou por isso mesmo?
No dia seguinte, quando estava terminando o dia, antes que eu falasse, ele disse: “Ontem fui para casa e não consegui dormir. Marisa perguntou o que eu tinha e eu disse que tinha sido meio grosso com você. Falei para ela que não tinha sido legal. Ela perguntou se eu ia pedir desculpa. Ah, pedir desculpa p... nenhuma. Vá à m...” Foi a forma de ele pedir desculpa.
Com Dilma será diferente, não é?
Tenho ligação muito legal com Dilma. Quando ela me chamou, ela disse: “A gente se conhece há oito anos, você confia em mim e eu, em você, e quero que você esteja ao meu lado, dizendo as verdades, me ajudando a enxergar as coisas”. Ao contrário do que pode parecer, ela tem enorme sensibilidade para arte, música...
E para pessoas, também?
Com as pessoas também. Mas ela tem um trato muito objetivo da coisa. Ela é mais direta.
E com os políticos? Parece que não tem muito jeito.
A Dilma tem uma incrível capacidade de aprendizado. Se você $que é uma pessoa que nunca tinha sido candidata e, de repente, ter nos ombros uma candidatura à Presidência da República, e com a obrigação de ganhar, é uma carga muito grande. E ela era subestimada. Sentar naquela cadeira traz um peso e uma responsabilidade. Ela vai continuar, com os mais próximos, dando broncas, como ele também fazia. Para algum lado, o cara tem de explodir.
Na sua opinião, a presidente eleita vai tentar uma aproximação maior com o povo? Lula diz que é isso que o fortalece. Ou será mais voltada para a gestão?
Ela vai dar muita importância para a gestão, porque Dilma vai aos detalhes. Ela descentraliza, mas cuida muito das coisas. Agora, não vai se descuidar deste lado (buscar contato com o povo). Ela me disse que sabe que os movimentos sociais, para ela, serão mais importantes do que foram para o Lula. Com o Lula era uma coisa natural.
O senhor terá papel de interlocução da presidente com o PT?
Sem dúvida. Tenho consciência disso. Não exclusivamente eu, porque temos muitos petistas no governo. Mas devo ter uma atenção especial nisso, nessa relação com o partido. Mas vocês podem notar que ela foi muito bem assimilada pelo PT.
E a presença do José Dirceu? O que achou de ele ter dito que nunca havia saído do Palácio?
Não entendi o que ele quis dizer. Ele nunca mais foi visto aqui. O Zé teve alguns contatos esporádicos com o presidente. Nunca aqui no Palácio. Tive contatos com ele de vez em quando. A gente é amigo. O Zé é um cara que contribui. É um grande formulador. Ele tem seus problemas, mas não seria inteligente o partido deixar um quadro como esse solto.
Mas, no governo Dilma, ele pode ajudá-la?
Zé está absolutamente centrado no processo dele. Toda ação dele é precedida da lógica de trabalhar pela absolvição (no STF, no processo do mensalão). Vai ser semelhante ao que foi no governo Lula. De vez em quando vai conversar com a Dilma, dar um pitaco aqui, outro lá.
No governo do Lula, a relação dele com a imprensa foi quase um caso de amor e ódio. Como o senhor acha que vai ser com Dilma?
Acho que, como ela vai ter menos rompantes que o presidente, essas fases serão menos evidentes. Nesta história tem uma coisa que é do jogo: nunca o governo vai estar satisfeito com a imprensa, e vice-versa. Porque é da tensão natural das coisas. Mas não me lembro de um único fato de ameaça à liberdade de imprensa neste governo. O que ele (Lula) se deu o direito? De criticar a imprensa. E toda vez que ele faz uma crítica, vira chavismo. Com Dilma, ela terá uma leveza em relação a isso.
E a regulação da mídia?
Isso terá continuidade, mas não será feito com um decreto. Nada que ameace a liberdade de imprensa. Não terá controle de conteúdo. Isso vai passar pelo Congresso, vai ter muito debate, audiência pública.
O que mais marcou os oito anos de governo, para o bem e o mal?
O que deixa a gente orgulhoso é uma coisa mais espiritual que material. É a mudança na autoestima do povo. Hoje, as pessoas se identificam mais como brasileiros, têm mais crença no país e em si mesmas. Ela foi costurada a partir de uma série de elementos. Um deles foi ter um presidente com a cara das pessoas do povo. Outro foi a mudança real na distribuição da renda, a questão da ascensão. A política externa. E mais uma coisa: a abertura do Planalto para todos os segmentos da sociedade.
Onde erraram, fizeram menos?
As falhas foram muitas. Não conseguimos mudar o modelo de gestão do Estado. Não conseguimos inovar suficientemente na modernização da máquina e ganhar eficiência. Na corrupção, apesar de todo o nosso esforço — a Polícia Federal entrou aqui no Palácio, pela primeira fez, fiscalizou os nossos, coisa que antes não fazia. Apesar disso, há uma frustração de ver que a cultura da corrupção continua. No nosso governo, os elementos da corrupção ficaram mais expostos, coisa que antes estava debaixo do tapete. E não dá para não mencionar o assim chamado mensalão.
Lula disse que vai se dedicar a desmontar “a farsa do mensalão”...
A insurgência do Lula sobre isso se dá mais sobre essa pecha de que o governo dele precisou comprar deputados para votarem a favor. Ele rejeita isso. O que houve foi um erro da tesouraria do PT em transformar os bancos BMG e Rural na tesouraria do partido.
Vocês achavam na época que o presidente tinha chance de se reeleger?
Houve muitos momentos em que a gente nem sabia se chegava ao final do governo. Houve dois dias em que as coisas foram muito difíceis. Um deles foi o depoimento do Duda Mendonça. Dava a impressão de que, de fato, o impeachment estava muito vizinho. Outro foi o famoso dia dos dólares na cueca. Aquele dia deu a impressão de que a gente não sabia o que mais podia ocorrer.
Como Lula reagiu no dia dos dólares na cueca?
Ele cobriu o rosto com as mãos, me lembro bem. E dizíamos: “Aonde esse pessoal doido vai nos levar?”. Mas ele aguentava a pancada toda e ainda consolava os aflitos.
Em algum momento ele pensou em jogar a toalha?
Ele foi muito forte. Quando teve aquela famosa conversa — e os personagens todos negam hoje (um deles o ex-ministro Márcio Thomaz Bastos) — em que disseram que era melhor ele fazer um acordo com a oposição e não tentar a reeleição, para terminar o mandato... Ele não deu resposta. Eu soube no dia seguinte, quando ele me contou: “Fico pensando que essas pessoas não têm noção da minha ligação com o povo. Não tem hipótese de isso acontecer. E eu vou ganhar esta eleição dos caras.” Eu mesmo tinha muitas dúvidas.
E qual foi o momento que deixou Lula mais feliz?
É difícil pontuar. A cabeça do Lula, o lado bom, funciona muito em função das boas notícias. Por exemplo: divulgação do Caged. Toda vez que vem notícia de que aumentou o emprego, ele fica feliz. Quando vêm notícias de apoio popular, o bicho veio fica feliz. Também tem muito orgulho da política externa.
Mas a posição do Brasil em relação aos direitos humanos não é bem vista lá fora. A própria Dilma disse que discorda de decisões nessa área.
Não é que ele não concorde que os direitos humanos são importantes. Claro que ele sabe. Mas ele sabe da complexidade. Sabe o que está em jogo quando se toma uma decisão dessas. A política externa tem muito de xadrez e bilhar. Você bate aqui para reverberar lá, faz concessões às vezes para poder conquistar outro objetivo lá na frente.
A candidatura da Dilma foi uma teimosia dele, para provar “olha como eu sou bom”?
Eu avalio que foi uma enorme teimosia dele, sob, inclusive, a descrença de muita gente aqui dentro do Palácio, que não sabia se seria possível fazer da Dilma uma pessoa com viabilidade eleitoral. Alguns até diziam que ele escolheu a Dilma porque, se perdesse, não perderia nada. Mas não era assim. Ele falava que íamos ganhar.
O senhor acha que ele volta em 2014?
Eu acho que essa é uma questão muito aberta na cabeça dele. A minha opinião é que ele vai ficar olhando a conjuntura. Num cenário de a Dilma fazer um governo bom, é evidente que ela vai à reeleição. Se houver dificuldades, e ele for a solução para a gente ter uma vitória, ele pode voltar. Isso não é um dogma para ele.
Não seria um risco grande depois de sair com a popularidade recorde?
Seria. Mas ele voltaria numa situação muito favorável. Ou muito necessária.
Como será o futuro de Lula? O instituto que ele quer criar?
Ele pretende fazer um centro memorial, não mais com coisa dele, mas vinculada a uma universidade, provavelmente vinculada à Federal do ABC. E também tratar dos projetos voltados para a África. Mas nada de cargo em organismo internacional. Ele não vai ficar amarrado a nada.