Marcos Coimbra, sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi
Uma novidade importante nas eleições presidenciais deste ano foi a proeminência que ganharam certos temas que poderíamos chamar morais. São questões importantes para todos na sociedade e, para algumas pessoas, fundamentais. Nunca, no entanto, haviam estado na pauta dos candidatos (pelo menos dos partidos maiores) e nem suscitado discussões relevantes na tomada de decisões de voto.
Este ano, temas como o aborto, a união civil entre pessoas do mesmo sexo e o consumo de drogas assumiram posição central, especialmente no período entre o final do primeiro turno e o início do segundo. Ao longo dessas semanas, parecia que a eleição tratava fundamentalmente deles e que todos os demais eram secundários.
O pano de fundo para o destaque que esses temas receberam talvez tenha sido o quase consenso que existia na opinião pública sobre a continuidade das políticas do governo Lula. Na medida em que a vasta maioria dos eleitores a desejavam, nem Serra, nem Marina (orientados por seus marqueteiros e pesquisadores) quiseram discuti-la, preferindo apresentar-se como opções a Dilma apenas no plano pessoal.
Era como se dissessem que a escolha deveria basear-se em critérios extra-políticos: a biografia de cada um, sua subjetividade e as diferenças entre eles em questões morais. Não estavam em contraste visões de Brasil e modos de tratar seus problemas, mas individualidades e assuntos da vida privada.
Bem que a campanha Dilma tentou manter a comparação entre os candidatos no plano político, insistindo na contraposição entre os governos FHC e Lula, e trazendo de volta a discussão sobre as privatizações. Mas a tarefa não era fácil, pois Serra não media esforços para se associar a Lula (chegando a se apresentar como o Zé para continuar o trabalho do Silva) e Marina até se parecia ao presidente no simbolismo. Ou seja, era difícil evitar que uma pauta não-política vicejasse.
É claro que isso não passou despercebido pelos estrategistas tucanos. Conscientes de que a eleição se encaminhava para a vitória de Dilma no dia 3 de outubro, moveram todos seus recursos para fazer com que essa pauta se impusesse, pelo menos junto a um segmento suficiente do eleitorado para levar a eleição para o segundo turno. Com sucesso, como vimos.
O resultado é que passamos cerca de três semanas dominadas pelas discussões sobre aborto e casamento homossexual, sem esquecer a liberação do consumo de drogas. Nelas, Dilma e Serra frequentaram todas as missas, cultos e serviços religiosos que sua agenda permitia (sem esquecer a inacreditável procissão de Mónica Serra ao Chile), assumiram compromissos e deram declarações contrárias a qualquer avanço na legislação relativa a esses assuntos. Um para ganhar, ela para não perder o voto do eleitor preocupado com eles.
A mais recente pesquisa nacional da Vox Populi ajuda a compreender o modo como a opinião pública reage a tais temas e revela um aspecto pouco óbvio de seu impacto eleitoral. Ela foi feita entre os dias 19 e 23 de novembro.
A primeira coisa que chama a atenção são as proporções que apóiam as restrições existentes: 82% dos entrevistados são de opinião que o aborto não deve deixar de ser considerado crime; 72% acham que o governo não deve propor mudanças na legislação que o descriminalizem; 60% entendem que a união civil de pessoas do mesmo sexo não deve ser permitida; 72% acham que o governo não deve propor leis que descriminalizem o consumo de drogas.
As variações socioeconômicas e regionais nas respostas são pouco relevantes, embora aconteçam nas direções esperadas. Pessoas de escolaridade mais alta, com maior renda, mais jovens, moradores de áreas urbanas e de estados mais desenvolvidos, tendem a ser menos hostis a mudanças, mas nunca em proporções elevadas (a aceitação de que o aborto não seja considerado crime é de 10% entre pessoas de baixa ou nenhuma escolaridade, mas vai a apenas 20% nas de alta escolaridade). Ou seja, se quisermos falar em conservadorismo, trata-se de um fenômeno majoritário na sociedade inteira.
Outro resultado interessante é que não há diferenças nos padrões de resposta dos eleitores de Dilma e Serra. Contrariando uma expectativa que se difundiu quando a campanha do PSDB pisou no acelerador dessa temática, a “taxa de conservadorismo” do voto Serra foi idêntica à de Dilma: 82% dos eleitores da petista e 82% do tucano, por exemplo, são favoráveis a que o aborto continue a ser considerado crime. O mesmo acontece no tocante à união civil homossexual (60% dos eleitores de Dilma e 62% de Serra acham que não deve ser permitida) e à revisão da legislação que proíbe o consumo de drogas (apenas 11% de Dilma e 12% de Serra acham que deve mudar).
Olhando esses números, vemos que há eleitores do PT conservadores e progressistas nessas questões, assim como do PSDB. Não é com base nelas que se explica a vitória de Dilma ou a derrota de Serra.
Correio Braziliense