Arthur Guimarães Do UOL Notícias
Em São Paulo
Documentos internos assinados por médicos e gestores do Hospital Maternidade Leonor Mendes de Barros, na zona leste de São Paulo, mostram que, apesar dos prêmios de gestão e do rótulo de unidade referência no atendimento de partos de alta e média complexidade, os profissionais que atendem as gestantes pelo Sistema Único de Saúde (SUS) sofrem com a falta de infraestrutura, superlotação e são obrigados a improvisar procedimentos para evitar a morte de pacientes – nem sempre com sucesso. Os fatos nos quais se baseiam esta reportagem estão descritos no livro de registro de ocorrências utilizado pelos médicos que atuam no serviço de urgência da unidade, localizada na avenida Celso Garcia, 2.477, no bairro do Belém. A encadernação, que fica na sala dos médicos do 1º andar, serve como meio de comunicação entre a equipe e a diretoria. Nos registros, logo após cada observação, está a assinatura do profissional e seu carimbo, com o número de registro profissional. Especializada em casos graves, mas sem UTI Uma das críticas mais recorrentes no livro de registros é sobre a falta de uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para as mães, item apontado pelos médicos como crucial em uma maternidade que atende especificamente casos já complexos, em que a incidência de quadros como hipertensão e crise hemorrágica tende a ser maior. A sala para o setor chegou a ser escolhida, mas imagens obtidas pela reportagem mostram que o espaço virou um depósito para arquivos administrativos. Assim, não raramente mães com complicações no parto são transferidas de última hora para outros hospitais. “É desumana a situação que a direção do hospital nos deixa diariamente nesta maternidade dita de ‘alto risco’. Não vou repetir o que dizem e escrevem neste livro nos últimos 19 anos que convivo e trabalho neste C.O. (Centro Obstétrico) sem UTI e clínico intensivista”, escreveu um médico nas páginas 50 e 51 do livro no domingo de 30 de agosto de 2009, referindo-se a uma paciente cujo atendimento foi prejudicado pela falta de materiais como cateter central e lâmina de ventilação. No total, mesmo diagnosticada com choque hemorrágico, ela ficou aguardando durante cerca de seis horas por uma vaga em uma UTI, obtida somente em região distante. “A paciente foi transferida para o Hospital Cachoeirinha, e não sei se ela está viva”, complementa o médico, pedindo providências da direção. Ainda no ano passado, em 20 de junho, outra situação semelhante é relatada. “Histerectomia total puerperal de paciente por choque hemorrágico + atonia uterina + coagulopatia. Paciente transferida para a UTI do Hospital Geral de Sapopemba, evoluindo para óbito na chegada do mesmo”, diz o registro médico, assinado por um profissional do hospital, relatando o quadro de uma mulher cujo útero não se contraiu novamente após o parto, proporcionando um intenso sangramento. Encaminhada para outra unidade, em outro bairro, a mãe acabou morrendo. No mesmo dia, outra médica faz uma consideração por escrito: “Temos nos deparado frequentemente com pacientes de alta complexidade, cuja boa evolução é dependente de cuidados intensivos. Não seria já o momento de nosso hospital ser capacitado com UTI?”, questiona. Documentos mostram que já havia reclamações dez anos atrás. “Saliento a necessidade urgente de uma unidade de terapia intensiva nesta instituição para que os profissionais que aqui trabalham com grande competência e profissionalismo possam estar trabalhando com mais segurança”, diz um relato assinado em 26 de dezembro de 2000. Até hoje, a maternidade segue recebendo casos graves, sem leitos de terapia intensiva. Ausência de materiais básicos Outro tema recorrente nas páginas do livro usado pelos médicos é a falta de materiais básicos para procedimentos cirúrgicos. No dia 18 de janeiro de 2009, por exemplo, um profissional da unidade faz um aviso: “Solicito momentaneamente não encaminhar pacientes para esse serviço pois estamos com problemas no abastecimento de água”. No dia 9 de agosto do mesmo ano, a equipe volta a se revoltar, dessa vez reclamando da falta de equipamentos que medem a vitalidade do bebê e as contrações da mãe, ferramenta chave para diagnosticar em tempo hábil se um feto está em sofrimento, por exemplo. “Assumimos o plantão com apenas 01 cardiotoco no PS (Pronto-socorro) e 01 no Pré-parto (que funciona muito mal). Não tem nenhum sonar no OS e nem no pré-parto! Como é possível mantermos tudo sob controle, agilizar o atendimento com segurança? Solicito providências com urgência”, diz um médico, que assina o texto e carimba com seu registro profissional. Documentos internos da maternidade Leonor mostram a falta de infraestrutura Veja a galeria de imagens com os desabafos dos médicos que trabalham no hospitalNeste ano, os documentos mostram que a rotina de carência permanece. Pelas anotações no livro de ocorrência no dia 8 de fevereiro, o quadro era crítico. “Não há travesseiros na Casa. Faltaram máscaras cirúrgicas, luvas nº 8. Inaceitável”, desabafou um profissional. Já no dia 22 de abril, novas solicitações de itens básicos. “Desde o início do plantão até as 12h tivemos falta de luvas, esparadrapo e anticéptico para cirurgia e sondagem vesical”. No dia 25 de abril, por exemplo, o livro traz a seguinte anotação, relatando pendências de instrumentos de uso contínuo: “Escovas para escovação pré-cirúrgica (acabaram às 19h). Agulhas para raqui nº 25 e nº 27. Limitação no número de compressas. Falta de macas.” Especialistas ouvidos pela reportagem explicaram quais são as consequências desses problemas de infraestrutura e confirmaram que todos os itens citados são essenciais e não podem faltar em uma unidade como a Leonor. Peregrinação A superlotação e a decorrente falta de leitos para novos pacientes são outros tópicos que mereceram críticas à direção por parte da equipe que atende no plantão da Leonor. Como médicos do hospital entrevistados pela reportagem confirmaram, as vagas de UTI neonatal não são suficientes para atender a demanda da região – e o berçário também sofre com o ausência de um número suficiente de vagas. Segundo dados da Prefeitura de São Paulo, a maternidade registrou cerca de 6.000 nascidos vivos em 2009, o que dá uma média (informal) de 16 nascimentos por dia. No total, são 14 vagas de UTI para crianças, oficialmente cadastradas pelo SUS. É fato que, pela legislação nacional, a Leonor está dentro dos parâmetros recomendados pelo Ministério da Saúde. Segundo a portaria nº 3.477, citando outras normas, os leitos de UTI neonatal devem representar 5% em relação ao número de leitos obstétricos (110). Ou seja, bastariam cerca de cinco leitos para cumprir a determinação federal. Na prática, no entanto, os documentos mostram que o perfeito atendimento dos pacientes depende de ampliações nessa capacidade. “Todos sabemos que é pouco, especialmente considerando que os bebês podem ficar até meses ocupando um leito. Não dá para expulsar a criança”, contou uma das médicas do hospital, que pediu para não ter seu nome divulgado por temer represálias. Ficha técnica Criado em 1944 e transferido para o sistema estadual em 1987, o hospital maternidade Leonor Mendes de Barros, segundo a secretaria Estadual de Saúde, é uma das referências do órgão para gestantes e parturientes de alto risco na região sudeste do município de São Paulo. Pelos dados do SUS, a unidade conta com 273 médicos e 468 funcionários, tendo 110 leitos obstétricos. A unidade já recebeu o título de Hospital Amigo da Criança, em 2000, concedido pela Organização Mundial da Saúde, pela UNICEF e pelo Ministério de Saúde. A maternidade também foi destacada como referência pelo bom atendimento, segundo pesquisa feita com usuários de novembro de 2007 a junho de 2008 Segundo ela, quando há superlotação, os médicos e enfermeiros são orientados a contatar a central do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) e o programa Mãe Paulistana, avisando para não encaminhar pacientes para a unidade. “Não vamos atender um prematuro se sabemos que não temos onde colocá-lo. Não podemos abrir as portas do hospital para a mulher e não para o bebê. E lógico que isso gera mais riscos para as grávidas, que precisam ficar indo de maternidade em maternidade em um momento de extrema urgência”, diz a médica. Os documentos obtidos pelo UOL Notícias comprovam a prática. No dia 28 de abril, por exemplo, um médico registra: “A lotação da UTI neonatal no momento é de 18 leitos, sendo que sua capacidade total é de 14 leitos”. No dia 5 de maio de 2010, nova observação. “Informamos que nossa UTI neonatal, com capacidade para 14 leitos, está com ocupação de 16 leitos. Solicitamos a transferência de todas as gestantes possíveis”. A reportagem teve acesso a diversos outros trechos semelhantes, igualmente presentes no livro dos médicos. Em boa parte das reclamações registradas no livro que fica na sala dos médicos plantonistas, pode-se observar o carimbo de médicos que ocupam cargos de chefia na unidade, como Tenilson Oliveira, diretor técnico de serviços de saúde. Isso mostra que, após cada observação da equipe, as anotações seguem para análise da direção do hospital, que tem conhecimento dos problemas.
Em São Paulo
Documentos internos assinados por médicos e gestores do Hospital Maternidade Leonor Mendes de Barros, na zona leste de São Paulo, mostram que, apesar dos prêmios de gestão e do rótulo de unidade referência no atendimento de partos de alta e média complexidade, os profissionais que atendem as gestantes pelo Sistema Único de Saúde (SUS) sofrem com a falta de infraestrutura, superlotação e são obrigados a improvisar procedimentos para evitar a morte de pacientes – nem sempre com sucesso. Os fatos nos quais se baseiam esta reportagem estão descritos no livro de registro de ocorrências utilizado pelos médicos que atuam no serviço de urgência da unidade, localizada na avenida Celso Garcia, 2.477, no bairro do Belém. A encadernação, que fica na sala dos médicos do 1º andar, serve como meio de comunicação entre a equipe e a diretoria. Nos registros, logo após cada observação, está a assinatura do profissional e seu carimbo, com o número de registro profissional. Especializada em casos graves, mas sem UTI Uma das críticas mais recorrentes no livro de registros é sobre a falta de uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para as mães, item apontado pelos médicos como crucial em uma maternidade que atende especificamente casos já complexos, em que a incidência de quadros como hipertensão e crise hemorrágica tende a ser maior. A sala para o setor chegou a ser escolhida, mas imagens obtidas pela reportagem mostram que o espaço virou um depósito para arquivos administrativos. Assim, não raramente mães com complicações no parto são transferidas de última hora para outros hospitais. “É desumana a situação que a direção do hospital nos deixa diariamente nesta maternidade dita de ‘alto risco’. Não vou repetir o que dizem e escrevem neste livro nos últimos 19 anos que convivo e trabalho neste C.O. (Centro Obstétrico) sem UTI e clínico intensivista”, escreveu um médico nas páginas 50 e 51 do livro no domingo de 30 de agosto de 2009, referindo-se a uma paciente cujo atendimento foi prejudicado pela falta de materiais como cateter central e lâmina de ventilação. No total, mesmo diagnosticada com choque hemorrágico, ela ficou aguardando durante cerca de seis horas por uma vaga em uma UTI, obtida somente em região distante. “A paciente foi transferida para o Hospital Cachoeirinha, e não sei se ela está viva”, complementa o médico, pedindo providências da direção. Ainda no ano passado, em 20 de junho, outra situação semelhante é relatada. “Histerectomia total puerperal de paciente por choque hemorrágico + atonia uterina + coagulopatia. Paciente transferida para a UTI do Hospital Geral de Sapopemba, evoluindo para óbito na chegada do mesmo”, diz o registro médico, assinado por um profissional do hospital, relatando o quadro de uma mulher cujo útero não se contraiu novamente após o parto, proporcionando um intenso sangramento. Encaminhada para outra unidade, em outro bairro, a mãe acabou morrendo. No mesmo dia, outra médica faz uma consideração por escrito: “Temos nos deparado frequentemente com pacientes de alta complexidade, cuja boa evolução é dependente de cuidados intensivos. Não seria já o momento de nosso hospital ser capacitado com UTI?”, questiona. Documentos mostram que já havia reclamações dez anos atrás. “Saliento a necessidade urgente de uma unidade de terapia intensiva nesta instituição para que os profissionais que aqui trabalham com grande competência e profissionalismo possam estar trabalhando com mais segurança”, diz um relato assinado em 26 de dezembro de 2000. Até hoje, a maternidade segue recebendo casos graves, sem leitos de terapia intensiva. Ausência de materiais básicos Outro tema recorrente nas páginas do livro usado pelos médicos é a falta de materiais básicos para procedimentos cirúrgicos. No dia 18 de janeiro de 2009, por exemplo, um profissional da unidade faz um aviso: “Solicito momentaneamente não encaminhar pacientes para esse serviço pois estamos com problemas no abastecimento de água”. No dia 9 de agosto do mesmo ano, a equipe volta a se revoltar, dessa vez reclamando da falta de equipamentos que medem a vitalidade do bebê e as contrações da mãe, ferramenta chave para diagnosticar em tempo hábil se um feto está em sofrimento, por exemplo. “Assumimos o plantão com apenas 01 cardiotoco no PS (Pronto-socorro) e 01 no Pré-parto (que funciona muito mal). Não tem nenhum sonar no OS e nem no pré-parto! Como é possível mantermos tudo sob controle, agilizar o atendimento com segurança? Solicito providências com urgência”, diz um médico, que assina o texto e carimba com seu registro profissional. Documentos internos da maternidade Leonor mostram a falta de infraestrutura Veja a galeria de imagens com os desabafos dos médicos que trabalham no hospitalNeste ano, os documentos mostram que a rotina de carência permanece. Pelas anotações no livro de ocorrência no dia 8 de fevereiro, o quadro era crítico. “Não há travesseiros na Casa. Faltaram máscaras cirúrgicas, luvas nº 8. Inaceitável”, desabafou um profissional. Já no dia 22 de abril, novas solicitações de itens básicos. “Desde o início do plantão até as 12h tivemos falta de luvas, esparadrapo e anticéptico para cirurgia e sondagem vesical”. No dia 25 de abril, por exemplo, o livro traz a seguinte anotação, relatando pendências de instrumentos de uso contínuo: “Escovas para escovação pré-cirúrgica (acabaram às 19h). Agulhas para raqui nº 25 e nº 27. Limitação no número de compressas. Falta de macas.” Especialistas ouvidos pela reportagem explicaram quais são as consequências desses problemas de infraestrutura e confirmaram que todos os itens citados são essenciais e não podem faltar em uma unidade como a Leonor. Peregrinação A superlotação e a decorrente falta de leitos para novos pacientes são outros tópicos que mereceram críticas à direção por parte da equipe que atende no plantão da Leonor. Como médicos do hospital entrevistados pela reportagem confirmaram, as vagas de UTI neonatal não são suficientes para atender a demanda da região – e o berçário também sofre com o ausência de um número suficiente de vagas. Segundo dados da Prefeitura de São Paulo, a maternidade registrou cerca de 6.000 nascidos vivos em 2009, o que dá uma média (informal) de 16 nascimentos por dia. No total, são 14 vagas de UTI para crianças, oficialmente cadastradas pelo SUS. É fato que, pela legislação nacional, a Leonor está dentro dos parâmetros recomendados pelo Ministério da Saúde. Segundo a portaria nº 3.477, citando outras normas, os leitos de UTI neonatal devem representar 5% em relação ao número de leitos obstétricos (110). Ou seja, bastariam cerca de cinco leitos para cumprir a determinação federal. Na prática, no entanto, os documentos mostram que o perfeito atendimento dos pacientes depende de ampliações nessa capacidade. “Todos sabemos que é pouco, especialmente considerando que os bebês podem ficar até meses ocupando um leito. Não dá para expulsar a criança”, contou uma das médicas do hospital, que pediu para não ter seu nome divulgado por temer represálias. Ficha técnica Criado em 1944 e transferido para o sistema estadual em 1987, o hospital maternidade Leonor Mendes de Barros, segundo a secretaria Estadual de Saúde, é uma das referências do órgão para gestantes e parturientes de alto risco na região sudeste do município de São Paulo. Pelos dados do SUS, a unidade conta com 273 médicos e 468 funcionários, tendo 110 leitos obstétricos. A unidade já recebeu o título de Hospital Amigo da Criança, em 2000, concedido pela Organização Mundial da Saúde, pela UNICEF e pelo Ministério de Saúde. A maternidade também foi destacada como referência pelo bom atendimento, segundo pesquisa feita com usuários de novembro de 2007 a junho de 2008 Segundo ela, quando há superlotação, os médicos e enfermeiros são orientados a contatar a central do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) e o programa Mãe Paulistana, avisando para não encaminhar pacientes para a unidade. “Não vamos atender um prematuro se sabemos que não temos onde colocá-lo. Não podemos abrir as portas do hospital para a mulher e não para o bebê. E lógico que isso gera mais riscos para as grávidas, que precisam ficar indo de maternidade em maternidade em um momento de extrema urgência”, diz a médica. Os documentos obtidos pelo UOL Notícias comprovam a prática. No dia 28 de abril, por exemplo, um médico registra: “A lotação da UTI neonatal no momento é de 18 leitos, sendo que sua capacidade total é de 14 leitos”. No dia 5 de maio de 2010, nova observação. “Informamos que nossa UTI neonatal, com capacidade para 14 leitos, está com ocupação de 16 leitos. Solicitamos a transferência de todas as gestantes possíveis”. A reportagem teve acesso a diversos outros trechos semelhantes, igualmente presentes no livro dos médicos. Em boa parte das reclamações registradas no livro que fica na sala dos médicos plantonistas, pode-se observar o carimbo de médicos que ocupam cargos de chefia na unidade, como Tenilson Oliveira, diretor técnico de serviços de saúde. Isso mostra que, após cada observação da equipe, as anotações seguem para análise da direção do hospital, que tem conhecimento dos problemas.