No futuro, um dos enigmas políticos contemporâneos, que talvez se torne tese para algum candidato ao mestrado de história, serão as relações políticas e pessoais entre Fernando Henrique Cardoso e José Serra. Não apenas os amuos recíprocos, as críticas ferinas que sempre trocaram, mas a relação quase simbiótica, a sujeição intelectual e política de Serra a FHC.
O que levou o tucano que parecia ter o maior potencial de liderança do partido, que assumiu o maior estado da União, em que as melhores experiências administrativas poderiam ser colocadas em prática, a ficar sempre em segundo plano, ofuscado pela liderança daquele que caminhava para ser o mais impopular ex-presidente da história?
Aqui alguns elementos para futuros historiadores que quiserem se habilitar a desvendar o enigma.
Eleito governador, José Serra parecia pronto para a escalada rumo à presidência da República. As eleições presidenciais foram encarniçadas. Sem dispor de cargos executivos, o ex-presidente FHC e senadores como Arhur Virgílio e Tasso Jereissatti, estimulavam o clima de guerra, o único no qual poderiam ganhar espaço junto ao PSDB.
O pêndulo do partido se inclinaria inevitavelmente para os governadores. O jogo político passaria a ser exercitado em outro nível porque todos - Lula e governadores – precisariam de um pacto de governabilidade. Os novos governadores seriam a caminho de arejamento da oposição, buscando governar da melhor forma possível para se qualificar para a sucessão de Lula. As esperanças maiores estavam em Aécio Neves, em Minas, e Serra, em São Paulo.
Terminada as eleições, com os ecos das baixarias ainda muito fortes, escrevi um artigo dizendo que tinha chegado a era dos negociadores. Serra tinha formação de centro-esquerda, não tinha acertos de conta com a biografia – como FHC com Lula -, seria o negociador, o governador com capacidade para conduzir uma interlocução de alto nível com o governo federal, enterrando a loucura que havia tomado conta da oposição e da mídia.
A partir dali, o país entraria na era do amadurecimento político, com oposição e situação disputando quem faria melhor governo, teria as melhores propostas, sem intenções golpistas, sem dossiês, sem o clima terrível inaugurado pelo pacto espúrio de 2005 com a mídia
No artigo, dizia que a única esperança de Serra se consolidar seria enterrar o fernandismo e inaugurar definitivamente o serrismo. Outros conselheiros de Serra insistiram no mesmo ponto.
Até então, julgava que as constantes manifestações de Serra sobre temas relevantes – levantados por um grupo restrito de pessoas que ele ouvia – fossem sinais de uma visão mais abrangente da economia. Levei algum tempo para entender que, afora alguns temas de economia, Serra passara ao largo de todas as grandes discussões dos anos 90 – gestão, inovação, políticas sociais etc. Suas manifestações sobre alguns temas que ganhavam repercussão na mídia eram meramente táticas, visando ganhar a confiança de jornalistas ou de lideranças de alguns setores para fortalecer sua cruzada anti-Malan, na disputa pelas atenções de FHC.
Assim que recebeu o artigo pelo mailing, ele me ligou. Disse que, em geral, concordava com minhas posições, mas não naquela visão de romper com o fernandismo. «Ele é meu amigo, me apoia», me disse.
Estranhei a conversa. Não estavam em jogo amizade ou coisas do gênero, mas a afirmação de um novo conjunto de idéias, de uma nova liderança, o que só poderia ser feito se se enterrasse o modelo anterior, desenhado e conduzido por FHC. Como inaugurar uma nova era no PSDB sem consumar o enterro da anterior, que o partido carregava como uma bola de ferro amarrada aos pés?
Desligado o telefone, fiquei tentando entender a conversa. Aí caiu a primeira ficha.
Lembrei-me de uma cena ocorrida alguns anos antes que se fixara em algum lugar da memória e agora voltava à tona.
Foi no período em que ACM saiu atirando para todo lado. Deu entrevistas a duas ou três semanais, levantou o caso Ricardo Sérgio, atacou Serra, falou no caso do Fórum do TRT e do leque de escândalos que a mídia vinha agitando.
Tinha um almoço com Serra no mesmo sábado no qual saíram as entrevistas com ACM. Ele ligou remarcando em lugar mais discreto. Almoçamos no restaurante do Hotel Cá Doro.
As entrevistas haviam sido violentas. Na revista Época, o Augusto Nunes – então diretor – forçara a barra até o limite da imprudência. Na abertura da entrevista, dizia que ela tinha a mesma importância da que Pedro Collor dera à Veja no início do processo de impeachment. Era evidente que a mídia procurava colocar uma outra marca na pistola, de derrubar mais um presidente.
No almoço, disse claramente a Serra que FHC era muito contemporizador, mas agora não tinha saída: ou destruía ACM ou seria destruído.
Serra ouvia e de vez em quando soltava comentários no estilo «faço e aconteço». «É por isso que não me querem na presidência porque sabem que em dois tempos acabo com eles», comentou. Na época tinha credibilidade para esse tipo de bazófia e acreditei piamente que ele acreditava no que dizia.
Segunda-feira tinha palestra em Brasília. Por volta do meio dia estava a caminho do aeroporto quando recebi telefonema do Serra. Perguntou se poderia almoçar com ele e FHC no Alvorada. Pedi para o taxista dar meia volta e fui para lá.
Durante algum tempo ficamos os três conversando na sala. Ali, pela primeira vez, pude entender melhor a relação entre ambos.
Até então tivera muitos encontros com FHC – desde os tempos de Senado – e com Serra, mas isoladamente. Em períodos de crise, FHC procurava seduzir interlocutores; em período de bonança, tornava-se arrogante. Na crise, tornava-se pró-ativo; na calmaria, acomodado.
Já Serra, desde que se tornara Ministro de FHC tinha por hábito, nas conversas, de criticar todas suas decisões, dizer-se melhor preparado para a presidência e contar como faria melhor isso ou aquilo. Todos jornalistas sabiam disso e achavam engraçado.
Mesmo com muitas conversas em off, minha percepção, até então, era de um FHC frágil, pouco determinado. E era impressão generalizada. Lembro-me de um almoço com o embaixador norte-americano, no segundo semestre de 1994. Eu lhe dizia que não acreditava na disposição de FHC para conduzir reformas importantes ou enfrentar grandes desafios. Ele me disse que era a mesma percepção do Departamento de Estado. E nem me conhecia pessoalmente, mas apenas pelas colunas.
Surpreendi-me com a rude franqueza dele, ainda mais sabendo-se que o estilo da mídia, desde aquela época, era de não respeitar off. Para sua sorte sua inconfidência foi feita a um jornalista que respeitava o combinado.
Mas o que via na minha frente, ali no Alvorada, era algo que não batia com minha percepção sobre os dois políticos. FHC estava à vontade, falava bastante. Serra estava inibido, sorumbático, monossilábico.
Na conversa, FHC comentou sobre os problemas no TRT de São Paulo. Disse que as acusações iriam quebrar a cara porque o contrato era juridicamente perfeito.
Antes de ir para a mesa, Serra virou-se para mim e pediu que repetisse para FHC o que havia lhe dito no almoço de sábado. Repeti, disse que ou FHC destruiria ACM, ou seria destruído por ele.
FHC não perdeu a bonomia. Como se tivesse tratando de um problema banal, disse:
- O António Carlos está esperneando porque sabe que está perdido. Vai ser cassado por causa do vazamento do painel de votação do Senado.
O caso do vazamento ainda não ganhara os jornais. Não piscou, não perdeu a segurança. Era o Príncipe em estado puro, frio, senhor da situação, analista absoluto de todos os desdobramentos da maior crise que enfrentara.
Olhei para o Serra, minha esperança de futuro grande estadista do país. E vi apenas um político assustado, inibido pela presença e pela análise de situação de FHC.
Fiquei algum tempo sem entender direito. Porque Serra precisou de mim para transmitir um recado que, se ele tivesse o poder de que se jactava, teria sugerido pessoalmente a FHC? Mais que isso: parecia desconhecer a determinação de FHC. Será que aquela inibição que testemunhei no almoço, quase um temor reverencial, era a regra nas suas relações pessoais?
Saí do almoço intrigado. Depois o dia a dia soterrou por algum tempo as lembranças daquelas cenas. A memória trouxe de volta quando Serra desligou o telefone, depois de me dizer que não havia razão para romper com o fernandismo.
No fundo, jamais conseguiu se desvencilhar da influência massacrante de FHC. Não propriamente nas ideias, mas na capacidade de decidir, de se mover no cenário político, na frieza ao encarar os grandes perigos, na clareza de definir slogans mobilizadores de campanha, da segurança de saber o que queria.
E FHC sempre conheceu Serra como a palma da mão. Daí a relutância permanente em abrir espaço para ele – que Serra interpretava como medo da sua competência. Daí as ressalvas permanentes, as dicas que passou no perfil que a revista Piauí traçou sobre Serra.
Durante os quatro anos como governador, comeu na mão de FHC. Através dele, montou o pacto com a mídia que lhe permitiu exercitar seu esporte predileto: fuzilar reputações de terceiros, pedir a cabeça de jornalistas, atuando nos bastidores. Foi a FHC que recorreu em pânico, em janeiro, querendo se afastar do cálice da candidatura a presidente, conforme a reconstituição feita pelo Estadão.
Em toda sua vida política, afastou-se de FHC apenas nos dois últimos meses, pressionado pelos altíssimos índices de rejeição do seu guru. E aí tornou-se um trem desgovernado, sem maquinista.
extraído do Blog do Nassif
O que levou o tucano que parecia ter o maior potencial de liderança do partido, que assumiu o maior estado da União, em que as melhores experiências administrativas poderiam ser colocadas em prática, a ficar sempre em segundo plano, ofuscado pela liderança daquele que caminhava para ser o mais impopular ex-presidente da história?
Aqui alguns elementos para futuros historiadores que quiserem se habilitar a desvendar o enigma.
Eleito governador, José Serra parecia pronto para a escalada rumo à presidência da República. As eleições presidenciais foram encarniçadas. Sem dispor de cargos executivos, o ex-presidente FHC e senadores como Arhur Virgílio e Tasso Jereissatti, estimulavam o clima de guerra, o único no qual poderiam ganhar espaço junto ao PSDB.
O pêndulo do partido se inclinaria inevitavelmente para os governadores. O jogo político passaria a ser exercitado em outro nível porque todos - Lula e governadores – precisariam de um pacto de governabilidade. Os novos governadores seriam a caminho de arejamento da oposição, buscando governar da melhor forma possível para se qualificar para a sucessão de Lula. As esperanças maiores estavam em Aécio Neves, em Minas, e Serra, em São Paulo.
Terminada as eleições, com os ecos das baixarias ainda muito fortes, escrevi um artigo dizendo que tinha chegado a era dos negociadores. Serra tinha formação de centro-esquerda, não tinha acertos de conta com a biografia – como FHC com Lula -, seria o negociador, o governador com capacidade para conduzir uma interlocução de alto nível com o governo federal, enterrando a loucura que havia tomado conta da oposição e da mídia.
A partir dali, o país entraria na era do amadurecimento político, com oposição e situação disputando quem faria melhor governo, teria as melhores propostas, sem intenções golpistas, sem dossiês, sem o clima terrível inaugurado pelo pacto espúrio de 2005 com a mídia
No artigo, dizia que a única esperança de Serra se consolidar seria enterrar o fernandismo e inaugurar definitivamente o serrismo. Outros conselheiros de Serra insistiram no mesmo ponto.
Até então, julgava que as constantes manifestações de Serra sobre temas relevantes – levantados por um grupo restrito de pessoas que ele ouvia – fossem sinais de uma visão mais abrangente da economia. Levei algum tempo para entender que, afora alguns temas de economia, Serra passara ao largo de todas as grandes discussões dos anos 90 – gestão, inovação, políticas sociais etc. Suas manifestações sobre alguns temas que ganhavam repercussão na mídia eram meramente táticas, visando ganhar a confiança de jornalistas ou de lideranças de alguns setores para fortalecer sua cruzada anti-Malan, na disputa pelas atenções de FHC.
Assim que recebeu o artigo pelo mailing, ele me ligou. Disse que, em geral, concordava com minhas posições, mas não naquela visão de romper com o fernandismo. «Ele é meu amigo, me apoia», me disse.
Estranhei a conversa. Não estavam em jogo amizade ou coisas do gênero, mas a afirmação de um novo conjunto de idéias, de uma nova liderança, o que só poderia ser feito se se enterrasse o modelo anterior, desenhado e conduzido por FHC. Como inaugurar uma nova era no PSDB sem consumar o enterro da anterior, que o partido carregava como uma bola de ferro amarrada aos pés?
Desligado o telefone, fiquei tentando entender a conversa. Aí caiu a primeira ficha.
Lembrei-me de uma cena ocorrida alguns anos antes que se fixara em algum lugar da memória e agora voltava à tona.
Foi no período em que ACM saiu atirando para todo lado. Deu entrevistas a duas ou três semanais, levantou o caso Ricardo Sérgio, atacou Serra, falou no caso do Fórum do TRT e do leque de escândalos que a mídia vinha agitando.
Tinha um almoço com Serra no mesmo sábado no qual saíram as entrevistas com ACM. Ele ligou remarcando em lugar mais discreto. Almoçamos no restaurante do Hotel Cá Doro.
As entrevistas haviam sido violentas. Na revista Época, o Augusto Nunes – então diretor – forçara a barra até o limite da imprudência. Na abertura da entrevista, dizia que ela tinha a mesma importância da que Pedro Collor dera à Veja no início do processo de impeachment. Era evidente que a mídia procurava colocar uma outra marca na pistola, de derrubar mais um presidente.
No almoço, disse claramente a Serra que FHC era muito contemporizador, mas agora não tinha saída: ou destruía ACM ou seria destruído.
Serra ouvia e de vez em quando soltava comentários no estilo «faço e aconteço». «É por isso que não me querem na presidência porque sabem que em dois tempos acabo com eles», comentou. Na época tinha credibilidade para esse tipo de bazófia e acreditei piamente que ele acreditava no que dizia.
Segunda-feira tinha palestra em Brasília. Por volta do meio dia estava a caminho do aeroporto quando recebi telefonema do Serra. Perguntou se poderia almoçar com ele e FHC no Alvorada. Pedi para o taxista dar meia volta e fui para lá.
Durante algum tempo ficamos os três conversando na sala. Ali, pela primeira vez, pude entender melhor a relação entre ambos.
Até então tivera muitos encontros com FHC – desde os tempos de Senado – e com Serra, mas isoladamente. Em períodos de crise, FHC procurava seduzir interlocutores; em período de bonança, tornava-se arrogante. Na crise, tornava-se pró-ativo; na calmaria, acomodado.
Já Serra, desde que se tornara Ministro de FHC tinha por hábito, nas conversas, de criticar todas suas decisões, dizer-se melhor preparado para a presidência e contar como faria melhor isso ou aquilo. Todos jornalistas sabiam disso e achavam engraçado.
Mesmo com muitas conversas em off, minha percepção, até então, era de um FHC frágil, pouco determinado. E era impressão generalizada. Lembro-me de um almoço com o embaixador norte-americano, no segundo semestre de 1994. Eu lhe dizia que não acreditava na disposição de FHC para conduzir reformas importantes ou enfrentar grandes desafios. Ele me disse que era a mesma percepção do Departamento de Estado. E nem me conhecia pessoalmente, mas apenas pelas colunas.
Surpreendi-me com a rude franqueza dele, ainda mais sabendo-se que o estilo da mídia, desde aquela época, era de não respeitar off. Para sua sorte sua inconfidência foi feita a um jornalista que respeitava o combinado.
Mas o que via na minha frente, ali no Alvorada, era algo que não batia com minha percepção sobre os dois políticos. FHC estava à vontade, falava bastante. Serra estava inibido, sorumbático, monossilábico.
Na conversa, FHC comentou sobre os problemas no TRT de São Paulo. Disse que as acusações iriam quebrar a cara porque o contrato era juridicamente perfeito.
Antes de ir para a mesa, Serra virou-se para mim e pediu que repetisse para FHC o que havia lhe dito no almoço de sábado. Repeti, disse que ou FHC destruiria ACM, ou seria destruído por ele.
FHC não perdeu a bonomia. Como se tivesse tratando de um problema banal, disse:
- O António Carlos está esperneando porque sabe que está perdido. Vai ser cassado por causa do vazamento do painel de votação do Senado.
O caso do vazamento ainda não ganhara os jornais. Não piscou, não perdeu a segurança. Era o Príncipe em estado puro, frio, senhor da situação, analista absoluto de todos os desdobramentos da maior crise que enfrentara.
Olhei para o Serra, minha esperança de futuro grande estadista do país. E vi apenas um político assustado, inibido pela presença e pela análise de situação de FHC.
Fiquei algum tempo sem entender direito. Porque Serra precisou de mim para transmitir um recado que, se ele tivesse o poder de que se jactava, teria sugerido pessoalmente a FHC? Mais que isso: parecia desconhecer a determinação de FHC. Será que aquela inibição que testemunhei no almoço, quase um temor reverencial, era a regra nas suas relações pessoais?
Saí do almoço intrigado. Depois o dia a dia soterrou por algum tempo as lembranças daquelas cenas. A memória trouxe de volta quando Serra desligou o telefone, depois de me dizer que não havia razão para romper com o fernandismo.
No fundo, jamais conseguiu se desvencilhar da influência massacrante de FHC. Não propriamente nas ideias, mas na capacidade de decidir, de se mover no cenário político, na frieza ao encarar os grandes perigos, na clareza de definir slogans mobilizadores de campanha, da segurança de saber o que queria.
E FHC sempre conheceu Serra como a palma da mão. Daí a relutância permanente em abrir espaço para ele – que Serra interpretava como medo da sua competência. Daí as ressalvas permanentes, as dicas que passou no perfil que a revista Piauí traçou sobre Serra.
Durante os quatro anos como governador, comeu na mão de FHC. Através dele, montou o pacto com a mídia que lhe permitiu exercitar seu esporte predileto: fuzilar reputações de terceiros, pedir a cabeça de jornalistas, atuando nos bastidores. Foi a FHC que recorreu em pânico, em janeiro, querendo se afastar do cálice da candidatura a presidente, conforme a reconstituição feita pelo Estadão.
Em toda sua vida política, afastou-se de FHC apenas nos dois últimos meses, pressionado pelos altíssimos índices de rejeição do seu guru. E aí tornou-se um trem desgovernado, sem maquinista.
extraído do Blog do Nassif