18 março 2010

Governo brasileiro não se alinha à hipócrita campanha anticubana

O governo brasileiro foi irrepreensível ao se recusar a figurar nessa (má) companhia, apesar das pressões. A esclarecedora declaração do chanceler Celso Amorim sobre a posição brasileira ficou quase perdida em meio à histeria oposicionista.
Hideyo Saito
Em vez de pressionar para que o governo brasileiro se some à atual campanha anticubana, como sempre capitaneada pelas agências oligopólicas de notícias, as boas almas que se manifestaram pela democratização de Cuba têm o dever moral de exigir o fim da política de agressão dos EUA contra Cuba. Do contrário, sua posição, apresentada como democrática, se revelará escandalosamente desonesta e hipócrita. Cessada a agressão e desanuviado o ambiente internacional, o próprio povo cubano poderá decidir, sem pressões externas, como será o seu modelo de democracia, conforme parecem indicar os debates já em curso no país, com grande participação popular.

Os chamados dissidentes cubanos receberam forte apoio da oposição brasileira e da mídia dominante local, em seu empenho para constranger o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a se manifestar publicamente contra o governo de Havana. Na famosa entrevista à Associated Press, usada como pretexto para a pancadaria, o presidente brasileiro trouxe à baila um episódio de morte em uma greve de fome coletiva de prisioneiros do Exército Republicano Irlandês (IRA), durante o governo de Margareth Thatcher, em março de 1981. “Eu vejo muita gente que hoje critica o governo cubano por causa da morte, [e que] não falava nada da morte do IRA”, cobrou Lula. Esse trecho foi convenientemente omitido pela mídia dominante, para deixar o caminho livre para a atual campanha.

Na compacta barreira de desinformação que se orquestrou, as palavras-chave usadas têm sido: luta pela liberdade, dissidentes heróicos, masmorras cubanas, presos de consciência, tirania insensível, cumplicidade de Lula. Os atores brasileiros do drama (jornalistas locais, enviados especiais, colunistas, comentaristas convidados, políticos) repetem em uníssono o noticiário difundido por agências oligopólicas de notícias, como a citada AP, a France Press e a Efe, e por órgãos como a Voz da América, do governo dos Estados Unidos. No jornal O Estado de S. Paulo, a sanha tem sido tamanha, que até colunista de assuntos econômicos, caso de Rolf Kuntz, e articulista convidado, como Eugenio Bucci, reforçaram o festival de acusações em termos praticamente idênticos aos do famoso extremista de direita Carlos Alberto Montaner. O Senado brasileiro aprovou moção de solidariedade aos “presos políticos”, em que também não faltaram críticas ao presidente Lula.

Nenhuma dessas boas almas, contudo, se preocupou em “checar” a notícia original ou qualquer de seus pormenores, cotejando-os com dados de outras fontes, ainda que fosse para complementar alguma informação. Se alguém o fizesse, poderia ter sabido que nenhum dos dois grevistas (Orlando Zapata Tamayo, que faleceu em 23 de fevereiro, e Guillermo Fariñas Hernández, que estava em estado crítico em um hospital cubano no final da segunda semana de março) foi condenado por atividades políticas, mas por delitos como furto, invasão de domicílio e agressões físicas, conforme registros judiciais cubanos. Ficaria informado também de que os presos por atividades políticas, cuja libertação é reivindicada por Fariñas, são os remanescentes do processo de 2003, quando 75 opositores foram condenados por receberem dinheiro do Escritório de Representação dos Estados Unidos em Havana para participar de atividades contra o governo revolucionário (e não, como diz a campanha-padrão contra Cuba, por se oporem ao regime).

Poderia confirmar ainda que o julgamento dos 75 foi realizado em tribunais regulares, em sessões públicas, com base em leis pré-existentes e assegurado o pleno direito de defesa e de apelação. O governo cubano divulgou, na ocasião, provas documentais sobre a relação que os acusados mantinham com representantes do governo estadunidense. É uma relação passível de incriminação penal em qualquer país do mundo. Em todo caso, cerca de 20 deles foram, desde então, libertados pelo governo por problema de saúde, obedecendo às 95 regras de tratamento carcerário humanitário, estabelecidas pela ONU.

Preso duas vezes por agressão
De acordo com a ficha corrida de Guillermo Fariñas Hernández, em 1995 ele espancou uma mulher na instituição de saúde onde trabalhava como psicólogo, causando-lhe ferimentos múltiplos no rosto e nos braços. Sofreu pena de três anos de prisão sem internamento (por sua primariedade), além de multa de 600 pesos. Em 2002, atacou um ancião com um bastão na cidade de Santa Clara, onde reside. A vítima teve de ser operada para extirpação do baçoe o agressor foi condenado a 5 anos e 10 meses de prisão (Causa 569/2002, do Tribunal Popular Provincial de Villa Clara). Por essa época, ele começou a utilizar o recurso da greve de fome para obter vantagens, como televisor em sua cela, tendo dessa forma atraído a atenção dos grupos contrarrevolucionários, aos quais aderiu em seguida. Em dezembro de 2003, devido à sua saúde fragilizada pela sucessão de greves, recebeu uma licença extra-penal com base no código cubano. Fora da cadeia, passou a colaborar com a Rádio Martí e a receber dinheiro regularmente da já mencionada representação dos EUA em Havana. Em 2006, voltou a se declarar em greve de fome, para reivindicar acesso domiciliar à internet.

Na atual greve, Fariñas Hernández recusou toda oferta oficial para tratamento de sua saúde, obstinando-se em dizer que irá até o fim. Da mesma forma, rejeitou oferta de asilo na Espanha, feita com a anuência de Havana. Por isso, a intervenção médica cubana só pôde acontecer quando o manifestante entrou em estado de choque, na noite de quinta-feira, 11 de março, em estado gravíssimo, como no caso de Orlando Zapata Tamayo, que viria a falecer. Eis o que divulgaram as agências France Press, Efe e Reuters sobre esse momento, conforme publicado no Estado de S. Paulo : “Momentos antes de Fariñas desmaiar, um grupo de médicos do sistema de saúde pública de Cuba visitou o dissidente e pediu que ele concordasse em ir, de ambulância, até uma clínica para que fizesse um check-up profissional. O opositor, porém, agradeceu ‘o profissionalismo e a humanidade’ dos médicos, mas insistiu em fazer os exames em sua casa. Os médicos aceitaram as condições e coletaram amostras no local, mas saíram antes de Fariñas desmaiar”.

As vantagens de ser dissidente cubano
Orlando Zapata Tamayo também jamais havia sido seguidamente condenado por atividade política, embora esteja sendo apresentado agora como mártir da luta pela liberdade. Ele só começou a adotar um “perfil político” quando percebeu que, na situação particularíssima de Cuba, isso poderia ser vantajoso por causa do farto dinheiro distribuído pelos Estados Unidos aos que se declaram dissidentes no país. Antes havia cumprido pena por “violação de domicílio” (1993), “furto e agressão com arma branca” (2000) e “perturbação da ordem pública” (2002). Em 2003, chegou a ser solto, mas voltou à cadeia por reincidência. Por isso, não figurou na relação de “prisioneiros políticos” elaborada em 2003 pela antiga Comissão de Direitos Humanos da ONU, com a intenção de condenar Cuba por violação aos direitos humanos.

Aquela mesma boa alma curiosa poderia igualmente notar, na campanha em curso, que apesar da insistência na denúncia de que os “presos de consciência” cubanos foram encarcerados simplesmente por serem contra o governo, o noticiário correspondente é abundante em declarações de opositores que vivem em Cuba, como Manuel Cuesta Morúa, René Gómez Manzano, Elizárdo Sánchez, Osvaldo Payá Sardinãs e outros. Eles são contra o governo, dão entrevistas para a imprensa internacional recheadas de críticas, mas não estão presos! Há algo errado nessa denúncia, portanto. O próprio Fariñas, aliás, estava em casa antes de ser internado e lá recebia diariamente jornalistas estrangeiros.

Anistia Internacional: as situações em Cuba, nos EUA e na Europa
Sobre o suposto caráter ditatorial do regime vigente em Cuba, é interessante ainda comparar o que diz o relatório “O Estado dos Direitos Humanos no Mundo 2008”, da Anistia Internacional (entidade nada amistosa com o governo cubano), sobre a situação naquele país, nos Estados Unidos e na Europa. O documento acusa o governo cubano de restringir as liberdades de expressão, de associação e de circulação, fala nos “presos de consciência” remanescentes do grupo dos 75 e registra incidentes em que teria havido “fustigamento e intimidação” de dissidentes. Mas não menciona um só caso de sequestro ou desaparecimento de opositores, nem tortura ou morte de prisioneiros em dependências carcerárias. Da mesma forma, não fala em repressão policial, nem em execução extrajudicial em Cuba.

Esse mesmo documento da Anistia Internacional, em contrapartida, denuncia os EUA por prática sistemática da tortura conhecida como waterboarding (simulação de asfixia), detenções e interrogatórios secretos e desaparecimento de suspeitos. Acusa ainda Washington de manter milhares de detidos, muitos “há mais de seis anos”, em Guantánamo, em Bagram e no Iraque, sem acusação nem julgamento. Sobre os governos europeus, o relatório da Anistia declara: “Em 2007 surgiram novas evidências de que diversos Estados-membros da União Europeia foram coniventes com a CIA no sequestro, na detenção secreta e na transferência ilegal de prisioneiros para países em que foram torturados ou sofreram maus tratos”.

Ora, a atual campanha contra o governo cubano se origina de forças políticas que admiram as democracias vigentes na União Europeia e nos Estados Unidos, considerando-as modelos a serem copiados por todo o mundo (inclusive Cuba). Deveriam, portanto, preocupar-se também com o estado dessa própria democracia e dos direitos humanos nesses países, em vez de gastarem todo o gás em sua fúria contra Cuba. Que tal uma campanhazinha para combater a pouca vergonha denunciada pela Anistia Internacional nos EUA e na União Europeia?

As múltiplas e insistentes agressões contra Cuba
O governo brasileiro foi irrepreensível ao se recusar a figurar nessa (má) companhia, apesar das pressões. A esclarecedora declaração do chanceler Celso Amorim sobre a posição brasileira ficou quase perdida em meio à histeria oposicionista. “Uma coisa é defender a democracia, os direitos humanos e à livre expressão, como fazemos. Outra coisa é sair dando apoio a tudo quanto é dissidente no mundo. Quando você tem de falar alguma coisa [a um governo estrangeiro], você fala de outra forma, discretamente, não pela mídia”, declarou. O chanceler brasileiro disse, em outras palavras, o que Lula já havia declarado em sua primeira visita a Cuba como presidente, em setembro de 2003: que não se somaria às pressões permanentes de setores direitistas contra o governo de Havana, falando publicamente sobre assuntos internos de um país amigo.

Mas a frase mais significativa de Amorim, nessa questão, foi a seguinte: “Se alguém está interessado em uma evolução política em Cuba, eu tenho a receita rápida: acabe com o embargo. Isso vai trazer grandes mudanças em Cuba”. Ele se referia ao bloqueio unilateral que os Estados Unidos mantêm contra o país desde 1962, como parte de uma ampla política de hostilidade, que inclui ainda a transmissão, a território cubano, de propaganda contra a revolução cubana através da Rádio e TV Martí (ao arrepio do código da União Internacional de Telecomunicações), o fornecimento de recursos financeiros à oposição interna, o incentivo à emigração de cubanos para os EUA e outras medidas intervencionistas. O próprio bloqueio não se resume a impedir Cuba de comprar e vender no mercado estadunidense. Compreende ainda a proibição de comerciar com filiais de companhias estadunidenses no mundo todo, assim como com empresas que tenham capital acionário ou usem tecnologia e componentes daquele país em sua produção. Significa igualmente o fechamento do mercado dos EUA a qualquer parceiro comercial de Cuba, de qualquer país, inclusive a bancos e a navios mercantes. Por força dessa mesma política, aplicada apesar da condenação de praticamente todos os países representados na ONU, cientistas cubanos costumam ser excluídos de congressos internacionais e de pesquisas conjuntas e o próprio país não consegue se filiar a algumas organizações internacionais.

Essa política, por mais inacreditável que pareça, é respaldada pela lei Helms-Burton, aprovada pelo Congresso dos EUA em 1996. Arrogantemente intitulada Lei para a Liberdade e a Solidariedade Democrática em Cuba, ela autoriza o presidente dos EUA a “proporcionar assistência e a oferecer todo tipo de apoio a indivíduos e organizações não-governamentais independentes para apoiar esforços com o objetivo de construir uma democracia em Cuba”. Estabelece ainda como devem ser as eleições sob um governo “democrático e independente”, chegando a vetar a participação dos atuais líderes cubanos, especialmente Fidel e Raúl Castro! Os tão ardorosos defensores da democracia em Cuba, que se revelaram de corpo inteiro nessa campanha, têm o dever moral de denunciar essa política imperialista de agressão e exigir o seu fim, como tem feito o governo brasileiro. Do contrário, sua posição, que apresentam como democrática, se mostrará escandalosamente desonesta e hipócrita.

Cessada a agressão e desanuviado o ambiente internacional, o próprio povo cubano poderá decidir, sem pressões externas, como será o seu modelo de democracia, conforme parecem indicar os debates já em curso no país, com grande participação popular.
Hideyo Saito é jornalista.