Atas de uma comissão de investigação criada em 1964 para punir "subversão política" na UFRGS são descobertas em Caxias do Sul
Documentos integravam o arquivo particular de um dos docentes que faziam parte da comissão criada para expurgar universidade
MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A CAXIAS DO SUL (RS)
Dados como perdidos para sempre, documentos produzidos por um órgão de perseguição política criado no alvorecer da ditadura militar foram descobertos no acervo de uma instituição privada de ensino na serra gaúcha. O governo promove uma campanha incentivando a entrega de papéis desviados no período de 1964 a 85.
A localização de centenas de páginas com atas de uma Ceis (Comissão Especial de Investigação Sumária) comprova como tantos documentos sumiram: funcionários associados ao regime se apossaram deles.
Os registros da Ceis instalada em maio de 1964 expõem a caça às bruxas e o estímulo à delação na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Hoje estão no Centro de Documentação da UCS (Universidade de Caxias do Sul), onde a Folha os leu. Integravam o arquivo particular do sociólogo Laudelino Teixeira de Medeiros, um dos 15 docentes da comissão destinada a punir a "subversão política" na UFRGS.
Os professores cassados buscaram, mas jamais encontraram as atas. Os organizadores de livro lançado em 1979 e reeditado em 2008 sobre os expurgos ignoravam seu paradeiro.
Referência da sociologia no Estado, Laudelino foi amigo dos sociólogos Gilberto Freyre, brasileiro, e Raymond Aron, francês. Compôs a banca examinadora no doutorado de Fernando Henrique Cardoso. Morreu em 1999. No ano seguinte, a família vendeu -por R$ 75 mil, relata- seu arquivo e uma coleção de 17 mil volumes para a UCS. Em meio aos livros e à papelada que documenta a trajetória de Laudelino, estavam as atas da Ceis.
"É uma surpresa, incrível! Eu achava que alguém tivesse destruído os documentos, porque são comprometedores", disse Lorena Holzmann, professora titular de sociologia da UFRGS, que coordenou em 2008 a reedição do livro "Universidade e Repressão - Os expurgos na UFRGS" (L&PM editores). Os autores nunca tiveram acesso às atas. A professora contou 17 docentes cassados em 1964.
"Pensava que haviam sido queimados", disse Luiz Osvaldo Leite, ex-diretor do Instituto de Psicologia. Filho de Laudelino, o advogado Luiz Inácio Franco de Medeiros disse não se lembrar das atas.
A sobrevivência dos originais está relacionada à cultura dos organismos de espionagem, embora não haja indício de que Laudelino colaborasse com eles. É o que afirma o advogado Jair Krischke, do MJDH (Movimento de Justiça e Direitos Humanos): "A regra na comunidade de informações internacional era que informação não se destrói. É guardada".
Krischke soube do destino das atas por um colaborador do MJDH, o professor da UFRGS Jorge Eduardo Enriquez Vivar, da Arquivistas Sem Fronteiras. O pioneiro na descoberta foi o historiador Jaime Valim Mansan. Em 2009, ele defendeu na PUC-RS a dissertação "Os Expurgos na UFRGS -Afastamento Sumário de Professores no Contexto da Ditadura Civil-Militar (1964 e 1969)".
Somando os excluídos em 1969, houve 41 professores punidos. "As atas têm importância tremenda", disse Mansan. "Dão a dimensão das relações internas da universidade."
A Ceis foi formada com base no Ato Institucional nº 1. Funcionou só em 1964. Além dos docentes representando 15 faculdades, nomeou-se um assessor militar: o general Jorge Teixeira, do 3º Exército (atual Comando Militar do Sul).
Expurgado sem direito a salário ou aposentadoria, o professor Ernani Maria Fiori foi investigado por ela. As atas revelam que o Exército e o Dops informavam a comissão. O general Teixeira definiu Fiori como "comunista da ala católica" que "lidera a ação dos comunistas na Faculdade de Filosofia".
Fiori iria para o Chile, onde se tornou vice-reitor da Universidad Católica. Morreria em 1985. "Ele fez pessoalmente sua defesa, oral, na comissão", relembra o filho José Luís Fiori, cientista político da UFRJ.
Entre os alvos da comissão estava o acadêmico de direito Marcos Faerman. Ele seria um dos grandes jornalistas brasileiros. Outro era o presidente do centro acadêmico da Faculdade de Medicina, João Carlos Haas Sobrinho. Um dos comandantes da guerrilha do Araguaia, foi morto em 1972.
Documentos integravam o arquivo particular de um dos docentes que faziam parte da comissão criada para expurgar universidade
MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A CAXIAS DO SUL (RS)
Dados como perdidos para sempre, documentos produzidos por um órgão de perseguição política criado no alvorecer da ditadura militar foram descobertos no acervo de uma instituição privada de ensino na serra gaúcha. O governo promove uma campanha incentivando a entrega de papéis desviados no período de 1964 a 85.
A localização de centenas de páginas com atas de uma Ceis (Comissão Especial de Investigação Sumária) comprova como tantos documentos sumiram: funcionários associados ao regime se apossaram deles.
Os registros da Ceis instalada em maio de 1964 expõem a caça às bruxas e o estímulo à delação na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Hoje estão no Centro de Documentação da UCS (Universidade de Caxias do Sul), onde a Folha os leu. Integravam o arquivo particular do sociólogo Laudelino Teixeira de Medeiros, um dos 15 docentes da comissão destinada a punir a "subversão política" na UFRGS.
Os professores cassados buscaram, mas jamais encontraram as atas. Os organizadores de livro lançado em 1979 e reeditado em 2008 sobre os expurgos ignoravam seu paradeiro.
Referência da sociologia no Estado, Laudelino foi amigo dos sociólogos Gilberto Freyre, brasileiro, e Raymond Aron, francês. Compôs a banca examinadora no doutorado de Fernando Henrique Cardoso. Morreu em 1999. No ano seguinte, a família vendeu -por R$ 75 mil, relata- seu arquivo e uma coleção de 17 mil volumes para a UCS. Em meio aos livros e à papelada que documenta a trajetória de Laudelino, estavam as atas da Ceis.
"É uma surpresa, incrível! Eu achava que alguém tivesse destruído os documentos, porque são comprometedores", disse Lorena Holzmann, professora titular de sociologia da UFRGS, que coordenou em 2008 a reedição do livro "Universidade e Repressão - Os expurgos na UFRGS" (L&PM editores). Os autores nunca tiveram acesso às atas. A professora contou 17 docentes cassados em 1964.
"Pensava que haviam sido queimados", disse Luiz Osvaldo Leite, ex-diretor do Instituto de Psicologia. Filho de Laudelino, o advogado Luiz Inácio Franco de Medeiros disse não se lembrar das atas.
A sobrevivência dos originais está relacionada à cultura dos organismos de espionagem, embora não haja indício de que Laudelino colaborasse com eles. É o que afirma o advogado Jair Krischke, do MJDH (Movimento de Justiça e Direitos Humanos): "A regra na comunidade de informações internacional era que informação não se destrói. É guardada".
Krischke soube do destino das atas por um colaborador do MJDH, o professor da UFRGS Jorge Eduardo Enriquez Vivar, da Arquivistas Sem Fronteiras. O pioneiro na descoberta foi o historiador Jaime Valim Mansan. Em 2009, ele defendeu na PUC-RS a dissertação "Os Expurgos na UFRGS -Afastamento Sumário de Professores no Contexto da Ditadura Civil-Militar (1964 e 1969)".
Somando os excluídos em 1969, houve 41 professores punidos. "As atas têm importância tremenda", disse Mansan. "Dão a dimensão das relações internas da universidade."
A Ceis foi formada com base no Ato Institucional nº 1. Funcionou só em 1964. Além dos docentes representando 15 faculdades, nomeou-se um assessor militar: o general Jorge Teixeira, do 3º Exército (atual Comando Militar do Sul).
Expurgado sem direito a salário ou aposentadoria, o professor Ernani Maria Fiori foi investigado por ela. As atas revelam que o Exército e o Dops informavam a comissão. O general Teixeira definiu Fiori como "comunista da ala católica" que "lidera a ação dos comunistas na Faculdade de Filosofia".
Fiori iria para o Chile, onde se tornou vice-reitor da Universidad Católica. Morreria em 1985. "Ele fez pessoalmente sua defesa, oral, na comissão", relembra o filho José Luís Fiori, cientista político da UFRJ.
Entre os alvos da comissão estava o acadêmico de direito Marcos Faerman. Ele seria um dos grandes jornalistas brasileiros. Outro era o presidente do centro acadêmico da Faculdade de Medicina, João Carlos Haas Sobrinho. Um dos comandantes da guerrilha do Araguaia, foi morto em 1972.