01 abril 2008

Um dossiê e muitas incertezas
Mário Magalhães, Ombudsman da "Folha"
Um dossiê (ou relatório ou "fragmentos da base de dados", como prefere a Casa Civil) sobre gastos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, sua mulher, Ruth, e antigos ministros foi produzido no Palácio do Planalto e vazado de forma ilegal.
Tão escancaradamente ilegal que foi constituída pelo governo uma "comissão de sindicância para apurar o episódio". Oficialmente, busca-se culpado(s).
A origem das informações, processadas na Casa Civil, é inequívoca, reconhecida inclusive pelo governo.
A essa altura, mais ninguém questiona a autenticidade das informações sobre gastos contidas nas 13 páginas. No domingo, a Folha demonstrou que "o relatório mostra a seleção de informações bastante diferentes do padrão de dados lançados no Suprim ['sistema de controle de suprimento de fundos da Presidência'] e estranhas a um trabalho definido como um 'instrumento de gestão', sem viés político".
Hoje os jornais reafirmam que, ao contrário do que afirma Dilma, não houve pedido do TCU para produzir o levantamento sobre FHC ou algo que desse base à investigação.
A existência do dossiê/relatório de 13 páginas foi revelada pela revista Veja no fim de semana retrasado.
Na sexta passada, a Folha manchetou "Braço direito de Dilma montou dossiê".
O jornal não apresentou provas contra Erenice Alves Guerra, principal assessora da ministra Dilma Rousseff.
Não que a informação, necessariamente, esteja errada. Quem leu a reportagem, contudo, não teve acesso a evidência de que esteja correta a versão do jornal.
A Folha descreveu uma reunião com membros da administração para criar "uma força-tarefa encarregada de desarquivar documentos referentes aos gastos do governo anterior a partir da rubrica suprimento de fundos, que incluiu cartões corporativos e contas 'tipo B'".
Nota oficial da Casa Civil afirma que tal reunião, "para organizar uma força-tarefa para produzir o chamado dossiê", nunca ocorreu.
A Folha também não comprovou a realização da reunião.
O jornal não afirmou que o dossiê foi utilizado para chantagear membros da oposição na CPI dos Cartões Corporativos. Fez bem. Um dos aspectos intrigantes do caso é que o dossiê é incapaz de constranger FHC. Chefe de um governo em que se acumularam escândalos de grande monta, em especial nas privatizações, o ex-presidente não se sai mal das 13 páginas. Se tudo o que os governistas têm contra ele for aquilo...
Ou seja: como fazer chantagem contra alguém e seus aliados com informações que não causam dano ao chantageado?
Alguém foi vítima de chantagem? Quem? Se foi, é informação que o jornalismo deve.
Seria diferente, por exemplo, em uma nação fictícia, situação e oposição promoverem chantagem pesada com informações sobre filhos do atual e do ex-presidente, se os rebentos tivessem amealhado riqueza durante ou em seguida aos mandatos dos pais. Aí, sim: ameaças capazes de fragilizar o mais valente dos investigadores de comissão de inquérito do país da imaginação.
Quem tinha muito a perder, por rigorosamente nada em troca, seria a ministra da Casa Civil. Mais por eventual dolo, menos por incapacidade de gerir com segurança um sistema de dados ou manter aloprados em sua equipe, mas sempre perdendo.
Essa peça, decisiva, não se encaixa no quebra-cabeça. Até agora, pelo menos.
Esta segunda-feira não foi um bom dia para a Folha. O jornal não destaca a defesa de ninguém do governo. E titula na primeira página: "Dossiê é 'covardia institucional', diz ministro do STF". Só no texto se descobre que Gilmar Mendes se refere a dossiês em geral, e não ao dossiê agora revelado.
O "Estado" deu entrevista com o chefe de gabinete de Lula, Gilberto Carvalho. O "Globo" saiu com declarações do ministro José Múcio. Não sei se o que eles dizem é verdadeiro ou falso, mas é direito dos leitores conhecer pontos de vista divergentes.
Hoje a coluna "Perguntar não ofende" (pág. A2) se refere ao "documento de 13 páginas que vazou para a imprensa, cuja autoria o próprio Palácio do Planalto assumiu".
Talvez, em meio a tantas informações, tenha me passado despercebido. Não me lembro, contudo, de ter lido que o Planalto assumiu a confecção das 13 páginas.
Na edição de sábado, a Folha divulgou declaração de Dilma: "Não acho que a Folha e a Veja montaram isso [dossiê]. Outros fizeram este trabalho e vocês [da imprensa] estão divulgando".
Ou seja, a ministra negou a produção das 13 páginas.
Minha impressão é que a Folha produz uma cobertura em tom unilateral que menospreza as incertezas que cercam o caso.
É possível que as coisas tenham ocorrido como o jornal sugere?
Sim. Poder tudo pode.
Mas é possível que haja outros elementos.
Ao contrário do dossiê Cayman/Caribe, as informações são verdadeiras. Ao contrário de outros dossiês, entretanto, elas não intimidam ninguém (a não ser que sugiram o conhecimento de outras despesas, cabeludas).
O vazamento das 13 páginas pode ter sido obra de petistas, aloprados ou não? Pode. Em 2006, com a reeleição de Lula nas mãos, a ambição de ganhar também o pleito paulista produziu o escândalo que contribuiu para empurrar a eleição presidencial ao segundo turno.
As 13 páginas também podem ter sido obra de quem queria desgastar o governo e reanimar a CPI dos Cartões. Ou, mais especificamente, ferir a ministra Dilma, que está longe de ser a candidata preferida do PT e de setores do Planalto para 2010.
Um incômodo da cobertura é que, evidentemente, a Folha sabe mais do que conta aos leitores. Uma coisa é o jornal ter recebido o relatório de alguma fonte do PT. Outra, do PSDB. Outra, ainda, de um funcionário, mais que petista, fiel à ministra.
O jornal deveria pisar no freio e ser mais cético. Um dossiê incapaz de constranger alguém não teria eficiência como instrumento de chantagem. A impressão é que, ao contrário do que a Folha e o jornalismo em geral dão a entender, a verdade sobre o episódio ainda está distante, seja ela qual for.
Por último: o episódio em curso ressalta a tragédia à democracia que é a ausência de transparência sobre o poder público no Brasil. Gastos dessa natureza, seja no governo FHC ou no de Lula, não deveriam estar protegidos por sigilo, e sim ser de conhecimento dos cidadãos.