02 abril 2008

De volta ao ensino superior como bem público
Rui Falcão
Para conter a expansão desordenada do ensino superior privado - cuja voracidade ameaça converter um bem público em "mercadoria" -, o Ministério da Educação, enquanto aguarda a aprovação pelo Congresso Nacional do Projeto de Lei do Ensino Superior, mostra disposição de intervir, de modo indireto, nos processos de incorporação de universidades particulares, de lançamento de ações em bolsas por conglomerados educacionais e de participação de capitais estrangeiros em instituições brasileiras de ensino superior. Como é sabido, o acelerado crescimento do número de matrículas no ensino superior e as oportunidades imediatas que se vislumbram para o setor, sob o governo Lula, com a abertura de 850 mil vagas até 2010, tem estimulado o interesse de capitais privados, estrangeiros e multinacionais, em expandir a sua presença no Brasil.
Segundo informam os jornais, somente nos dois primeiros meses de 2008 foram realizadas 9 operações de incorporação de empresas do setor, no valor de R$ 81 milhões. A expectativa do mercado é que o ritmo de concentração se mantenha forte em 2008, mais acelerado do que em 2007 quando ocorreram 25 aquisições, das quais 14 realizadas por quatro empresas de capital aberto. Elas obtiveram R$ 1,4 bilhão com a venda de ações em bolsa, tendo aplicado os recursos na aquisição de universidades concorrentes para aumentar sua participação no mercado.
As empresas de capital fechado também têm financiado suas compras com recursos próprios ou financiamento junto a bancos. Nesse grupo, destacam-se a Unicsul, o grupo Veris, que é dono do Ibmec, e a Laureate, empresa americana que controla a Anhembi-Morumbi, a São Paulo Business School e tem participações em empresas do Nordeste. Há também fundos interessados em fechar negócios no setor, como é o caso de dois que são administrados pelo UBS Pactual e detém participação na Fanor, do Ceará.
A universidade privada americana DeVry, que negocia a compra de uma instituição de ensino superior no Brasil, já elegeu os dez principais alvos para uma aquisição. A transação integra o plano de internacionalização da empresa, no qual o Brasil é prioridade, ao lado de México e Índia. Para isso, a DeVry dispõe de cerca de US$ 300 milhões. A meta é fechar um acordo até meados de 2008 e, em quatro anos a partir daí, chegar a 40 mil universitários. O foco da DeVry nos Estados Unidos, país onde fatura quase US$ 1 bilhão, são as classes de menor renda.
Na avaliação do secretário de Educação Superior do MEC, Ronaldo Mota, o mercado da educação brasileiro fatura anualmente cerca de R$ 40 bilhões - tanto quanto o turismo. Dadas as perspectivas de expansão rápida, ele é muito atraente para grupos internacionais e, na visão de Mota, desperta também o interesse de investidores australianos e portugueses.
É nesse contexto que se deve entender a insistência de Mota, em entrevistas e artigos, para que o Congresso vote o Projeto de Lei do Ensino Superior, que reforça a mensagem de que a educação é um bem público estratégico para a formação cultural, razão por que "não pode ser tratada como mercadoria". O projeto que prevê novas normas de regulação está parado há dois anos; foi enviado pelo Executivo em regime de urgência, mas o pedido foi retirado. Na avaliação do MEC, uma vez aprovada, a nova lei vai definir critérios mais precisos de avaliação e estabelecer políticas públicas estáveis. A falta de regulação adequada e avaliações consistentes significa, para o secretário, admitir que, ao lado de boas instituições privadas, se estabeleçam empresas nas quais o lucro é tratado como algo mais importante do que a educação.
Não existem obstáculos legais para a presença de capitais estrangeiros no setor educacional. Pelo artigo 209 da Constituição, "o ensino é livre à iniciativa privada". Mas ante a avalancha de interesses externos no ensino superior privado, é compreensível a preocupação do governo com o risco de desnacionalização do setor. O Projeto de Lei do Ensino Superior define o ensino privado como "função pública delegada" e prevê que 70% do capital votante das universidades pertença a brasileiros natos ou naturalizados.
O que o governo mais teme é que a abertura do mercado educacional seja incluída nas negociações do Acordo Geral para o Comércio de Serviços, na Organização Mundial do Comércio (OMC), em cujo âmbito a educação passará a ser tratada como "commodity". Até que ponto não se vai retirar do poder público nacional o controle da regulamentação no País é a grande preocupação do governo Lula, preocupação que pode ser assumida como símbolo da distância doutrinária intransponível que separa, de um lado, o PSDB de FHC e José Serra e, de outro, o Partido dos Trabalhadores.
Há razões históricas antigas, recentes e atuais de sobra para se temer um tal desfecho. A disputa em torno do caráter público x mercantil do ensino superior encontra-se no centro do embate mundial entre as forças neoliberais, em prol da regulação social pelo livre mercado, e as forças desenvolvimentistas, em prol da intervenção estatal no processo de desenvolvimento. Trincheira dos neoliberais, as diretrizes do Banco Mundial dos organismos multilaterais em geral identificam no ensino superior características de um bem privado, que se pode subordinar às forças do mercado - e foi a subordinação a tais diretrizes que caracterizou o tratamento conferido pelo governo FHC ao ensino superior.
No âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), tem-se a manifestação de seu secretariado - em documento considerado então restrito (Council for Trade Services, Background Note by the Secretariat, 23/9/1998)-, de que a educação superior pode ser tratada como serviço comercial, e em conseqüência, deve ser regulada pela OMC. Em outro documento, de outubro de 1999, intitulado Introdução ao Acordo Geral sobre Comércio em Serviços (AGCS), de liberalização comercial dos "serviços educacionais", o secretariado definiu expressamente os serviços que, a seu critério, deveriam ser regulados pelo AGCS, incluída a educação". E a partir de 2000, a OMC deu início a negociações para a liberalização dos serviços educativos. Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia propuseram aos demais países uma abertura sem limites aos investimentos oriundos de seus territórios e solicitaram a remoção de toda restrição à livre circulação de capitais no ensino superior privado. Como declarou Klor de Alva, diretor do grupo Apollo Internacional, Inc., em recente conferência no Brasil, "A educação é um negócio e, como tal, deve ser gerenciada como um empreendimento do mundo corporativo, com base na busca de resultados" (Revista do Ensino Superior, 2004, p. 22). "Esse é um dos setores mais lucrativos da economia brasileira", afirma Ryon Braga, presidente da consultoria Hoper Educacional.
O impacto de tais diretrizes de educação superior sobre países centrais e periféricos tem sido catastrófico. Elas se caracterizam pela redução do financiamento estatal da educação superior pública, pelo estancamento de sua expansão, pelo congelamento salarial do corpo docente e demais funcionários, pela perda de direitos trabalhistas, pela flexibilização dos contratos de trabalho e pela ênfase nas atividades de ensino, em detrimento das atividades de pesquisa - esse é justamente o propósito do governo Serra, em São Paulo, ao instituir a Secretaria do Ensino Superior.
Quanto aos financiamentos pelo governo da União no sistema federal de educação superior, observe-se a drástica redução que ocorreu no período 1989-2002. Os recursos destinados às instituições federais, que em 1989 (governo Sarney) correspondiam a 0,97% do PIB, e que em 1994 (governo Itamar Franco) correspondiam a 0,91%, caíram gradativamente no governo FHC, para atingir apenas 0,61% em 2001, uma queda de 34% no período. Com relação ao total de impostos arrecadados pela União, a queda foi de 37% e com relação às despesas correntes do Fundo Público Federal, a queda foi ainda mais acentuada, 44%.
Evidencia-se assim, nesse período de 14 anos, a mais severa redução dos recursos financeiros públicos destinados às instituições federais de ensino superior das últimas quatro décadas. O quadro revela-se ainda mais dramático ao se observar que no período houve uma expansão de matrículas no ensino superior federal de 63%; de 315 mil em 1989 para 522 mil em 2002, enquanto no ensino superior privado a expansão foi de 160%, com as matrículas passando de 934 mil em 1989 para 2 milhões e 400 mil em 2002.
No período 1994-2002, enquanto a expansão nas matrículas no ensino superior federal elevava-se a 37% (e a do ensino superior privado a 112%), o governo FHC promovia uma redução de 5% no seu corpo docente e de 21% em seu quadro de funcionários, além do quase congelamento salarial dos docentes e funcionários técnico-administrativos. O custo/aluno, um dos principais alvos da crítica ao ensino superior federal no governo FHC, excluídos os gastos com hospitais universitários e outros não relacionados diretamente ao ensino, sofreu no período 1995-2001 uma redução de 51% (de R$ 11.198,00 para R$ 5.488,00). Esse porcentual de redução, com valores a preços de janeiro de 2002 (IGP-DI/FGV), como fração do PIB nacional, foi de 53,7%. Observe-se ainda que é sobre o ensino superior público - e não privado - que incidem mais de 90% dos custos da pesquisa produzida no País, mormente a básica, e que mais de 80% dos mestres e 90% dos doutores titulados são frutos do investimento público e da atividade científico-acadêmica das universidades públicas. São os recursos públicos financiando indiretamente a expansão do ensino superior privado: o setor privado fica com os lucros, e o Estado, com os prejuízos.
No contexto da deserção tucana, sobressai em contraste a dívida da democracia brasileira para com a universidade pública. Salvo, no entanto, alguns momentos dos governo Sarney e Itamar Franco, as universidades federais foram duramente negligenciadas ou punidas com falta de recursos de manutenção e investimento pelos governos posteriores à ditadura. O governo FHC privilegiou as universidades privadas, com financiamentos vantajosos, dotação de recursos a fundo perdido, que propiciaram sua rápida expansão, ampliando dessa forma o quadro privatista, não somente por atender aos jogos de clientela dentro do Congresso Nacional, mas também por subserviência doutrinária aos organismos multilaterais.
A estratégia tucana da inserção subordinada colocou os países desenvolvidos em posição privilegiada frente a países emergentes, como o Brasil. O enfrentamento dessa nova forma de desigualdade converteu-se no mais importante desafio do governo Lula, na estratégia de nação, que rejeita conformar-se com a divisão entre nações produtoras e consumidoras de conhecimento e tecnologia. Nessa perspectiva, um projeto de nação soberana e competitiva no plano internacional colocou para o País a necessidade de se apoiar num sistema nacional de universidades públicas, que dê suporte à formação de pessoal acadêmico e científico de alto nível, produza ciência básica e aplicada, de boa qualidade, e sirva de referência para o conjunto do sistema de educação superior.
Assim, com o advento do governo Lula, inverteu-se a estratégia de deserção tucana no ensino público superior em proveito do ensino superior privado, condizente com o seu projeto de inserção subordinada do Brasil. Lula rompe com a lógica da privatização do ensino superior pela expansão descontrolada do setor, e estabelece princípios, diretrizes e critérios de um crescimento estrategicamente orientado para o atendimento das necessidades nacionais - uma "heresia", na cartilha neoliberal -, abandonando como único titular da legitimidade o critério da demanda do mercado. Isso é feito no entendimento de que, com a revalorização do papel do sistema de educação superior no cumprimento de sua missão acadêmica e social, este estará igualmente contribuindo para o fortalecimento da democracia e a construção de um projeto de nação.
Nesse sentido, a democratização do acesso à educação superior nas instituições federais e no conjunto do sistema leva à sua ampliação em todas as direções, sob o estímulo e a supervisão do poder público. Daí a importância da expansão de vagas, sobretudo, no setor público, com políticas de inclusão social, aumento da oferta de cursos noturnos, e promoção de políticas afirmativas, para o ingresso de estudantes oriundos das escolas públicas e os afrodescendentes e indígenas.
Em contraste com o estilo tucano de governar, que dispensa a discussão e a participação dos atores sociais, o governo Lula, mediante postura receptiva e diálogo, deu início ao processo de recuperação do ensino superior público, já em 2005, quando no seu primeiro orçamento propôs elevação de 47% do gasto nas instituições federais em relação a 2004 (de R$ 7,7 bilhões, em 2004, para R$ 8,9 bilhões em 2005). Além disso, comprometeu-se a criar em quatro anos 400 mil novas vagas, uma expansão de 70% - outras 400 mil deverão ser criadas até 2010. No mesmo período, a verba de custeio aumentou de R$ 543 milhões para R$ 803 milhões - um incremento de 48%. O MEC autorizou a contratação de 5.000 professores, sendo 4.000 para docentes do ensino superior e 1.000 para professores de ensino básico e cerca de 2.000 técnicos administrativos para hospitais universitários e 1.600 para as demais unidades das instituições federais. Sem falar da criação de novas universidades públicas federais em número jamais visto em programa de qualquer governo.
Com Lula, em sentido amplo a educação é dever do Estado e da família (Art. 205 da Constituição Federal), mediante o "acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um" (Art. 208 CF). "O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais" (Art. 215 da CF). "Constituem patrimônio cultural brasileiro... as criações científicas, artísticas e tecnológicas" (inciso III do Art. 216 da CF). "A pesquisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional" (par 2º do Art. 218 da CF).
Sendo assim, o Estado deve propiciar, ele próprio, a educação superior como um de seus atributos em benefício dos que a recebem das instituições públicas de educação superior e também em favor do conjunto da sociedade pelos serviços que lhes prestarão os profissionais por elas formados. O projeto de Lei do Ensino Superior visa, nesse sentido, à ampliação da rede pública de educação superior e a oferta de melhores condições acadêmicas nas instituições existentes para que elas cumpram suas finalidades. Refere-se ao papel do Estado como provedor da educação superior pública e como supervisor da educação superior privada realizada legitimamente, conforme Art. 209 da CF. Com a sua aprovação, a educação privada passa a subordinar-se às finalidades da educação superior a que se submete a educação superior pública.
Os parlamentares devem atentar para a necessidade de se aprovar o projeto - e aos movimentos sociais cabe despertá-los para a razão de sua urgência.

Rui Falcão, 64 anos, advogado e jornalista, é deputado estadual pelo Partido dos Trabalhadores. Foi deputado federal, presidente do PT e secretário de governo na gestão Marta Suplicy.