03 outubro 2007


O caçador de comunistas, o paladino do capitalismo, o combatente neoliberal, está de volta. Nesta terça-feira de sol e frio no Rio de Janeiro, o Globo estampa na primeira página: livro didático faz propaganda do PT. Corro à página 7 para assistir a esse terrível atentado contra a República brasileira. Um livro didático fundamental que fala do PT! Imaginem! Leio o artigo do Kamel, contemplo as montanhas de Santa Teresa pela janela e penso que, no Brasil, os livros didáticos deveriam falar sobre o partido republicano e democrata, sobre os jacobinos e gerondinos, sobre conservadores e liberais britânicos. Nunca sobre os partidos brasileiros.Agora falando sério. Com a democracia de volta, esses histéricos macarthistas de plantão deveriam se acostumar com o fato de livros didáticos discorrerem sobre a história política recente com mais desenvoltura e, porque não?, com opinião. São historiadores, são acadêmicos especializados. Os livros são aprovados por conselhos universitários plurais. Se há petistas nesses conselhos, se há tucanos, se há pmdebistas, e daí? Os partidos fazem parte da vida republicana nacional. Não é saudável omitir sua existência nos livros de história.Outra. Os professores escolhem entre um leque de diversas obras e autores. Naturalmente, os livros não são perfeitos. Mas o Globo também não é. Os artigos de Kamel também não são perfeitos; ao contrário, traduzem uma boçalidade gigante.Kamel quer revolucionar o pensamento didático brasileiro. Quer que nossos autores passem a fazer grandes elogios ao capitalismo e a demonizar o comunismo. Faltou combinar com os russos (ahah, a metáfora ficou boa!). Os estudiosos da história, à luz de tantos milhões de mortos, de tantos milhares de anos de opressão e miséria, sabem que o comunismo não foi o pior dos males da humanidade.Estou assistindo filmes chineses da década 40, exibidos dentro do circuito do Festival de Cinema do Rio. Veja os filmes, Kamel e verá que totalitarismo, censura, prisão política, existiam na China bem antes de Mao, com o agravante de que o país era um pedaço de carne devorado avidamente pelo Ocidente, de um lado e pelo Japão, de outro. Era um país sem dignidade, em declínio econômico, humilhado moralmente, devastado por uma corrupção sem limites. Enquanto soldados do império ou da república de fachada torturavam e matavam estudantes chineses, militares japoneses sequestravam mulheres chinesas para usar como escravas sexuais.A ditadura não foi inventada pelo comunismo, senhor Kamel. Os reis eram ditadores. Porque você tem tanta raiva de Mao e não tem a mesma raiva de Henrique III? De Júlio César? É preciso olhar a história com mais isenção. O capitalismo industrial, quando surgiu na Inglaterra no século XVIII ou XIX, foi um sistema que comportava uma exploração humana brutal. Leia os livros de Dickens. As grandes conquistas dos trabalhadores sempre caminharam juntas com a construção da filosofia socialista. Os países mais ricos do mundo, hoje, foram os que contemplaram amplamente direitos trabalhistas, não por bondade patronal, mas pelo profundo respeito à força que o trabalhador conquistou após o advento do comunismo. O irônico é que, desde que os patrões passaram a respeitar mais o trabalhador, a economia desses países cresceu de maneira extraordinária.É o mesmo que acontece no Brasil. Enquanto Kamel se agarra a picuinhas didáticas, o país vem crescendo justamente devido à inclusão de enorme massa, antes excluída, no mercado consumidor. O debate democrático inclui uma discussão ampla sobre a educação e sobre o que se ensina às crianças. Mas não é por ser empregado do Globo que a opinião de Kamel vale mais. Ao contrário, Kamel. Também tenho minhas críticas aos livros didáticos brasileiros. Mas elas vão no sentido inverso das suas.Para mim, nossas crianças deveriam ser conscientizadas, desde cedo, sobre os perigos da manipulação midiática e sobre o histórico golpista de nossa imprensa. Deveriam ser conscientizadas, sim, sobre a luta dos trabalhadores brasileiros, desde Quilombo dos Palmares, Guerra dos Canudos, as grandes greves do início do século XX, até a luta contra a ditadura, a criação do novo sindicalismo, as Diretas Já e eleições contemporâneas, pelo simples fato de que a maioria esmagadora dessas crianças é pobre, pertence a classe trabalhadora e, como tal, só terá dignidade enquanto tiver consciência de faz parte de uma classe que ainda precisa lutar muito para consolidar seus direitos no Estado Brasileiro.Essas crianças, Kamel, precisam aprender que deverão, um dia, lutar contra pessoas como você, representantes do velho reacionarismo terceiro-mundista e seu capitalismo de segunda-mão.A verdade é que a nossa direita é particularmente rancorosa e totalitária. Vejam o caso de Sarkozy, o novo presidente de direita na França. Chamou um socialista para ser Ministro de Relações Exteriores. Indicou um socialista para a vaga do FMI. Enfim, fez uma política de aproximação e respeito pela esquerda, porque representa uma direita que não vê o mundo com esse maniqueísmo vulgar com que gente como Kamel vê.No fundo, o conflito central das economias modernas nunca foi exatamente capitalismo X socialismo. Foi sobretudo o conflito entre trabalhadores X elite, por razões estritamente econômicas, não ideológicas. Daí nasceram ideologias, claro. O triste é ver boçais como Kamel endeusando somente as ideologias nascidas da elite, em detrimento daquelas criadas para defender o direito dos trabalhadores. O socialismo cometeu grandes erros, mas a sua matriz é nobre: todos os movimentos socialistas nasceram em contextos de luta contra terríveis injustiças e sistemas opressores e totalitários. Se o socialismo descambou para o totalitarismo, também foi porque seus adversários eram totalitários: czares na Rússia, imperialistas chineses, ditadores latino-americanos.Enfim, Kamel, a política faz parte de nossa vida e as crianças precisam ser incluídas no debate. Aprenda uma coisa: livro didático não é manual ideológico. É somente uma referência para o debate. O professor usa o livro para debater, para criticar, inclusive para criticar negativamente o conteúdo da obra. Quem faz a aula é o professor, Kamel. É o professor que escolhe o livro e que faz a interpretação.Seu patrulhamento é absurdo, histérico e paranóico. Evidentemente, cada autor tem sua posição. Querer um historiador completamente isento ideologicamente é ridículo. Os grandes historiadores têm posições ideológicas claras. Se a maioria deles não vêem o socialismo com o seu maniqueísmo e rancor, então, meu caro, vá fundo na sua cruzada, mas lute com decência, apresentando argumentos menos surrados, menos clichês. O seu temor descabido sobre o que se ensina a nossas crianças me faz pensar do que eu aprendia na escola: de que às elites brasileiras não interessava que o povo se educasse, porque aí aprenderia a votar com independência e seriam menos manipuláveis.Seus artigos, Kamel, revelam o medo profundo de que nossos brasileirinhos, expostos ao debate político desde cedo, ganhem uma independência de pensamento tão grande que, heresia das heresias, decidam não mais ir à Igreja Global, comungar nos escândalos globais e votar nos candidatos globais. Mentalidades como a sua, então, seriam empurradas para os extremos fétidos da história.
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