O chanceler Celso Amorim rejeita retaliações e aposta no diálogo com a Bolívia.
Por Maurício Dias
Por Maurício Dias
Na segunda-feira 8, quando já era alvo dos adversários da política externa brasileira praticada pelo governo Lula, e às vésperas de se submeter a uma sabatina na Comissão de Relações Exteriores do Congresso, onde a maioria dos senadores, se pudesse, tiraria o seu escalpo, o chanceler Celso Amorim aparentava serenidade. Não era a calma de quem desdenhava dos problemas. Parecia mais a tranqüilidade de quem, nesta segunda passagem pela chancelaria (a primeira foi entre 1993 e 1994, no governo Itamar Franco), já não se aturdia com os grandes atropelos na carreira.
"Há uma dosede oportunismo por parte de quem sempre teve uma opção preferencial pelo Norte"Desta vez, o tremor político, sentido mais fortemente no Itamaraty, teve o epicentro na Bolívia e foi provocado pela decisão do presidente Evo Morales de nacionalizar a exploração do petróleo e do gás produzidos no país. Os ativos da Petrobras na Bolívia foram levados de roldão. No Brasil, houve quem se lembrasse com saudade dos soberanos que mandavam gravar na ponta dos canhões a frase: “A última razão dos reis”. Outros, suspiraram com saudade do porrete e, quiçá, da impetuosidade do presidente Bush, dos Estados Unidos. Mas o Brasil, na tradição mais liberal que marca os melhores momentos da política externa do País, ficou com a proposta de negociação, e não de retaliação, como diz o chanceler Celso Amorim em entrevista a Carta Capital. “Não mandaremos marines para desalojar os administradores nomeados pelo governo boliviano. Isso é o que se queria? O Brasil não age dessa maneira. Não era assim no passado e não será agora”, reafirma Amorim. Leia abaixo a íntegra da entrevista. CartaCapital: A nacionalização da Petrobras na Bolívia foi dependurada na conta do Itamaraty. O senhor assume os erros pelas perdas do País?
Celso Amorim: O governo brasileiro praticamente não investiu nada nos últimos dois anos. Foi muito prudente. Não sou contra o investimento feito na Bolívia. É um absurdo, um oportunismo político querer debitar ao Brasil duas coisas: primeiro, a eventual dependência, que nem sequer é tão grande, que teríamos do gás boliviano. Isso decorre de decisões tomadas em governos anteriores. Não entro no mérito se certas ou erradas; segundo, querer debitar à eventual simpatia por Evo Morales o que aconteceu na Bolívia. Já havia um referendo, em 2004, que determinava a nacionalização, praticamente da maneira que foi feita. Houve uma lei, em 2005, que confirmava o referendo. A Petrobras, eu sei, tinha planos de investir 5 bilhões de reais nos próximos anos. A instabilidade no país era grande. Evo Morales é o quarto presidente do país em quatros anos. Nós queremos que o governo de agora seja estável, que governe e dialogue conosco como está dialogando.
CC: Houve um referendo pela nacionalização e, posteriormente, uma lei confirmando. Quando um país projeta uma política com esse grau de soberania, o que uma outra nação, com interesses lá, deve fazer para se proteger, mesmo que haja simpatias políticas envolvidas?
CA: Nós tomamos a providência de sempre manter e aprofundar o diálogo. Eu mesmo estive na Bolívia antes das eleições e conversei com os dois principais candidatos. Com Morales e com o Quiroga, candidato da oposição. Isso é o que podemos fazer. Se vivêssemos no tempo da rainha Vitória, podíamos tirar a Bolívia do mapa. Mas o presidente Lula não faria isso. Eu não faria isso. Hoje em dia nem que se queira isso pode ser feito.
CC: Quem são os que sugerem o porrete?
CA: As pessoas que foram intermediárias das relações tradicionais. Elas detinham de certa maneira o monopólio do Brasil com o exterior. Era como no tempo do Império. Quem lidava com as relações com a Inglaterra teria esse monopólio. Há reação também daqueles que não têm confiança no Brasil. Sempre pensam no Brasil dependente. É mais cômodo. A independência traz a necessidade de tomar decisão. Traz responsabilidade. O Brasil, se entrar no Conselho de Segurança como membro permanente, vai ter de tomar decisão. Isso tem custo e tem vantagens. Os tempos mudaram. A época de hoje permite mais ousadias.
CC: O diálogo basta?
CA: As pessoas colocaram muita ênfase no reconhecimento da soberania da Bolívia. Mas isso é um fato indiscutível. O que se pode fazer é discutir as questões e ver como elas vão se passar. O fornecimento do gás. A nota emitida, após a reunião dos presidentes reafirma a garantia do abastecimento, fala em preço eqüitativo e que permita a viabilidade dos negócios. Esse é o caminho do equilíbrio que procuramos. Há muita gente hoje, com grande surpresa, que sempre foi muito flexível com as grandes potências, em muitos momentos. Com a Bolívia querem um diálogo como se fossemos o Ted Roosevelt. Nossa política sempre foi, é e será a da boa vizinhança e não do porrete. Não temos marines e, se tivéssemos, não mandaríamos marines para desalojar os administradores bolivianos.
CC: Há uma surpresa com o conceito de soberania...
CA: Eu defendo a do Brasil com muita intensidade.
CC: A Bolívia quebrou regras à luz do direito internacional?
CA: Eu não vejo assim. Isso não quer dizer que não vamos defender nossos interesses. Há contratos sob leis internacionais, como o de fornecimento de gás, que prevê um procedimento de arbitragem. Isso é específico em questão de preço, fornecimento etc. Nacionalizar ativos é um direito que os países têm. Como fazer é outra questão. Se vai haver indenização, compensação, uma negociação ou coisa assim. A Arábia Saudita fez isso depois de 1973, depois do choque do petróleo, e nem por isso deixou de ter boas relações e de vender petróleo...
CC: O Brasil não isso em 1953? CA: A diferença é que o Brasil não tinha quase nada. As grandes companhias multinacionais preferiam acreditar, achar, que o País não tinha petróleo. CC: Enfim, não havia grandes interesses atingidos.
CA: Mas o Brasil teria feito de qualquer maneira. O problema não está em nacionalizar ou não nacionalizar. O problema está em reconhecer direitos a partir de auditorias. Avaliar se os investimentos foram amortizados ou não. Isso vai para a mesa de discussão. Há uma confusão entre normas de direito internacional público, como a soberania e outras normas que regem as relações entre empresas. São coisas diferentes.
CC: O ritual da decisão, com o uso do Exército, não deu um caráter emocional...
CA: Eu acho que foi totalmente desnecessário. Isso contribuiu para a manifestação das pessoas que são e sempre serão contra a integração da América do Sul. No governo Itamar Franco, há 12 anos, muitos diplomatas me perguntavam por que estávamos “perdendo tempo” com o Mercosul. Queriam participar daquela iniciativa paras as Américas do presidente Bush, pai. Eles não me surpreendem. Há, evidentemente, uma dose de oportunismo por mais respeitáveis que possam ser as pessoas. Essas pessoas sempre tiveram uma opção preferencial pelo Norte, vamos dizer assim. O uso das tropas favoreceu isso. E eu considero desnecessário. Descabido. Mas ninguém foi molestado. Foi uma coisa simbólica. No plano dos símbolos, a meu ver, uma coisa desnecessária em se tratando de países amigos.
CC: Foi surpresa?
CA: O dia da decisão? Ninguém tinha certeza. Era uma possibilidade. Ninguém tinha certeza. Há, também, é preciso deixar claro, um espaço para negociar. São 180 dias. Os outros países também estão negociando.Acho que a política externa tem sido um dos pontos populares do governo do presidente Lula além, é claro, da política social. Há um ano e meio, quando fizemos a reunião dos países árabes, fizeram um vendaval. Dois meses depois, fui recebido por Ariel Sharon, em Israel.Talvez não tivesse sido recebido tão bem se não tivesse havido aquela conferência.
CC: A política externa não tem sido a ação que dá uma cara mais diferente ao governo Lula?
CA: Não vejo assim. Há a política social. A política econômica enfrentou condicionantes dos quais não podia fugir. O povo sabe. A política externa, como se projeta mais no plano das idéias, acaba tendo esse caráter que você falou.
CC: Como pode ser definida a política externa brasileira? É uma política independente como se dizia nos anos 60?
CA: O que é a independência dos países hoje? Já não há mais a Guerra Fria. O não-alinhado não existe. Não-alinhado com quem? O mundo de hoje é interdependente quer a gente queira quer não. Nesse ponto o Roberto Campos estava certo. Então, como podemos melhorar a nossa posição nesse tabuleiro? Aprofundar a integração da América do Sul e diversificar as nossas parcerias.
CC: Para aumentar as exportações?
CA: Isso não é mecânico. É um fenômeno que tem, também, um aspecto qualitativo. Nos aumentamos as exportações para o mundo inteiro. E bastante. Mas aumentamos mais ainda para países com os quais tínhamos uma relação muito pouco ativa. Índia, países árabes e até mesmo a África. América Latina e Caribe são, hoje, nossos principais parceiros comerciais. A América do Sul, considerando o primeiro trimestre deste ano, equivale aos Estados Unidos para as nossas exportações. Quatro anos atrás era pouco mais do que a metade. Se for considerada a independência nesse sentido, posso dizer que a política que implementamos é independente. Ela não se curva a imposições e procura diversificar os parceiros. A independência, hoje, não se faz por meio de autarquia ou pelo isolamento e, sim, pela diversificação de parcerias.
CC: Antes o País se curvava?
CA: Eu vou deixar para os historiadores julgarem. A mim compete realizar a política do presidente Lula. É preciso dizer que o Brasil segue alguns princípios do relacionamento internacional: não-intervenção, autodeterminação dos povos, solução pacífica dos conflitos. Nesse ponto, não houve, e não cabia, mudança radical. Mas nem todo governo defendeu os princípios básicos com a mesma ênfase. Já é uma coisa. Mas tem a política externa que é realizada com ações práticas. Nesse ponto acho que há uma distinção forte entre esse governo e os anteriores.
"No tempo da rainha Vitória,poderíamos tirar a Bolívia do mapa. Hoje, nem que se queira isso pode ser feito"
"No tempo da rainha Vitória,poderíamos tirar a Bolívia do mapa. Hoje, nem que se queira isso pode ser feito"
CC: O maior parâmetro de independência seria o não- alinhamento automático com os Estados Unidos. É disso que se fala.
CA: Isso era a maneira definida pelo ministro Silveira, no governo Geisel. Ele dizia, que o Brasil era não-alinhado, inclusive em relação aos não-alinhados. Isso não é um objetivo hoje em dia. O mundo mudou. Se eu fosse procurar conceitos com os quais trabalhar, preferiria o conceito de multipolaridade. Ou seja, para que o mundo seja menos dependente de um único poder. Através de atitudes morais como teve, por exemplo, no início do governo, quando foi muito claro em relação à invasão do Iraque.
CC: Fora do plano moral, quais as razões políticas que levaram a essa decisão?
CA: Achávamos que era possível uma solução pacífica; os motivos alegados sobre a existência de armas de destruição em massa não estavam sendo comprovados. E, por fim, o principal: ainda que nós não achássemos isso tudo, mas se o Conselho de Segurança tivesse achado, nós nos curvaríamos. É o órgão das Nações Unidas que detém o uso legítimo da força na esfera internacional, fora a alegação de legítima defesa.
CC: Apoiando?
CA: Admitindo, mas nunca participando. O presidente Lula, sem agressividade, foi muito firme. Poucos meses depois ele esteve nos Estados Unidos e o presidente Bush o recebeu e disse: “Temos nossas divergências, mas temos muita coisa em comum e vamos conversar sobre o que concordamos”. Essa atitude é respeitada. Hoje o presidente Bush diz para a chanceler alemã, Angela Merkel, que estava satisfeito por ela estar conversando não só com os parceiros europeus, mas com o Brasil. Temos hoje uma posição internacional que não tínhamos. E, para ser franco, isso causa um pouco de inveja. As pessoas que nos antecederam gostariam de ter alcançado isso. Se o nosso comércio está aumentando com todos os países e, mais ainda, com os países em desenvolvimento, talvez fosse o caso de todo mundo estar contente. Mesmo aqueles que têm relação histórica e tradicional com os pólos de poder também estão ganhando.
CC: O senhor refere-se a quem?
CA: Falo de atores de dentro do Brasil. Como o poder é uma coisa relativa, talvez eles achem que estão perdendo poder relativo porque, à medida que se diversificam as nossas relações, o poder relativo desses que quase detinham o monopólio vai se diluindo. Nossa política é fundamentada na visão dos interesses brasileiros, e compreende que eles passam pela integração da América do Sul e na maior aproximação com países que têm interesses semelhantes aos nossos. Evidentemente, que isso não exclui uma relação com os ricos. Nós precisamos dessas relações. CC: Que teses o Brasil abandonou na política externa que contribuem para consolidar...
CA: Há teses implícitas e explícitas. A linha de uma política mais dócil, com menos capacidade de contraditar interesses das grandes potências. Ninguém diz isso. Ninguém se diz de direita no Brasil. Ninguém se diz a favor de uma política dócil...
CC: O que dizem então? CA: Dizem que nós devemos reconhecer que não temos “excedentes de poder”. É a formulação teórica mais elegante dada para essa política. Como não temos “excedentes de poder” seríamos, então, obrigados a adaptar nossas linhas de ação aos que detêm esse excedente de poder. Mas a realidade não é essa. Há um filme sobre o futebol no Haiti chamado O Dia em Que o Brasil Esteve Aqui. É interessante. Absolutamente objetivo. Não é de propaganda nem é laudatório. Um sociólogo haitiano, entrevistado, diz que há o hard-power e o soft-power. O Brasil, segundo ele, é muito bom no soft. Capacidade de convencimento e de negociação. A diplomacia brasileira sempre teve isso. Por essa razão, conseguimos na OMC mudar os termos da negociação, depois que criamos o G-20. Não sei a qual acordo chegaremos na OMC. Mas posso adiantar que o pior acordo que conseguirmos hoje, supondo que tudo corra mal, será melhor que o que se teria obtido em Cancún. Isso se deve à negociação do Brasil. Se eu ficasse pensando nos “excedentes de poder” não me aliaria à Índia, porque poderia parecer que o Brasil segue o modelo indiano. Hoje qualquer economista, de direita ou de esquerda, diz que a Índia vai muito bem. Eu me lembro, no entanto, que diziam em relação à OMC que o Brasil não podia ficar identificado com a Índia.
CC: Foi difícil superar obstáculos e consolidar essa política?
CA: O Brasil na OMC tinha uma posição de defesa em relação aos países em desenvolvimento. Chegou quase a renegar isso no governo passado.
CC: Qual foi a lógica de criar o G-20?
CA: Tradicionalmente os países ricos nos dividiam e, habilmente, diziam que certas medidas que estavam em pauta podiam beneficiar o Brasil ou a Austrália, mas acabariam prejudicando a Índia ou a Indonésia. O G-20 quebrou essa lógica. Uniu, pela primeira vez em matéria de comércio agrícola, países como a Índia ou a Indonésia ou o Egito e países como o Brasil, Argentina, Uruguai etc. Houve momentos em que tivemos de optar. A Austrália e a Índia iam para lados diferentes. Tive de dar uma orientação ao nosso embaixador: procure conciliar, mas, se tiver de escolher um, escolha a Índia. Não temos nada contra a Austrália. Ou seja, escolha um país em desenvolvimento. Era simbólica a decisão. Com isso, construímos a mais poderosa aliança que os países em desenvolvimento jamais tiveram nas negociações internacionais.
CC: Os países ricos assistiram a isso tranqüilamente, sem reagir?
CA: Reagiram de maneira muito forte no primeiro momento.
CC: O que significa isso?
CA: Durante a reunião houve uma tentativa de demonização do G-20, uma pressão violenta. Pouco depois, meu amigo Bob Zellig, que era chefe da negociação americana, escreveu um artigo no Financial Times em que o nome do Brasil é citado cinco vezes. Um artigo sobre o comércio internacional. Houve pressão para que os países da América Latina saíssem do G-20. Vários saíram.
CC: Mas o Brasil ainda tem uma participação irrisória no comércio internacional. Qual o peso do País?
CA: Cerca de 1%. Não se mede um país só pelo valor do comércio. O Brasil é, por exemplo, o maior receptor de investimento dentro dos países em desenvolvimento. O País tem, hoje, retomando a tradição, uma capacidade de ação diplomática de maior desassombro. Sem nenhuma confrontação ou com retórica agressiva.
CC: A política executada hoje é a de mais tradição no Itamaraty?
CA: Há uma diferença entre os princípios do relacionamento internacional e a definição de política externa. As grandes linhas estão na Constituição. Política muda em vários momentos. O Itamaraty sempre teve uma boa noção da defesa do interesse nacional. É uma burocracia, no sentido weberiano da palavra, muito bem formada. Como toda a burocracia, também, segue as regras ditadas. A ênfase varia.
CC: O fim da Guerra Fria, que acabou com a bipolaridade, tem facilitado a condução de uma política externa mais livre?
CA: O fim da Guerra Fria tem a vantagem de permitir que certas colocações não sejam rotuladas. Antes, se se discordasse dos Estados Unidos surgia a acusação de ser pró-comunista. Era um ônus muito grande e exigiu muita coragem de Afonso Arinos, no governo Jânio e Santiago Dantas, com Jango. Era uma política externa que procurava uma certa eqüidistância, que nunca foi total. Hoje em dia, nós perseguimos os nossos interesses. Mas sair da bipolaridade e cair na unipolaridade nos deixa numa camisa-de-força talvez até pior. Hoje temos de trabalhar por uma multipolaridade. Obviamente que se isso for medido por ogivas nucleares ela não ocorrerá, porque ninguém, nunca mais, chegará ao poderio que os Estados Unidos têm. Como, a meu ver, essas armas na prática são inutilizáveis, porque a humanidade rejeita moralmente o uso dessas armas em qualquer circunstância. Isso abre campo para outras formas de exercício de poder. Aí países como o Brasil, a Índia, China, Rússia, Japão e algum país africano que vai emergir, podem contribuir para um maior equilíbrio das relações.
CC: É dentro desse quadro que o Brasil ambiciona uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU?
CA: Esse é um problema que terá de ser revolvido. No ano passado surgiu a oportunidade, porque a ONU fazia 60 anos, Kofi Annan estava empenhado e havia um relatório sobre a reforma da organização. A falha esteve nas divergências táticas entre os países da África, que impediram a formação da maioria de dois terços. A falta de unidade na África foi jogada com maior experiência pelos países que não queriam a reforma naquele momento ou daquela maneira. Se tivesse uns 80% dos votos africanos teria passado. A reforma não é um pleito do Brasil. É uma necessidade da própria governança internacional. O Conselho de Segurança hoje, sobretudo os membros permanentes, não é mais representativo da realidade do mundo. Para que uma decisão possa ser seguida e acatada pela comunidade internacional é preciso que ela tenha não só legitimidade legal, mas, também, política. E para ter legitimidade política é preciso que haja uma reforma no Conselho.
CC: Consta que, em 1945, o Brasil pleiteou isso e foi vetado porque os russos achavam o País muito próximo dos Estados Unidos. Hoje, o veto não vem por estar mais distante?
CA: A vida é cheia de sístoles e diástoles como diria o general Golbery do Couto e Silva. Não sei se o Brasil, mas, naquela época, algumas pessoas postulavam. Mas foi, de fato, vetado pela União Soviética. O presidente Roosevelt, dos Estados Unidos, queria isso, porque queria a América como um conjunto mais representado. O Brasil tinha participado da guerra. Hoje não vejo os Estados Unidos vetando o Brasil. O Brasil não tem tido uma posição de confrontação e, sem ser subserviente aos interesses americanos, tem adotado na região uma posição de independência que, no fundo, contribui para uma maior tranqüilidade.
CC: O Brasil, para usar uma linguagem pouco diplomática, não teria chumbado a adesão à Alca no Continente?
CA: Não, nós não chumbamos a Alca. Eu cheguei a um acordo com eles em Miami, sobre uma Alca redefinida. Depois os fundamentalistas lá e, talvez aqui, não quiseram aceitar. Eles já admitem contemplar uma negociação Mercosul e Estados Unidos. Nós também, e temos todos a ganhar com isso. Não podemos é hipotecar a nossa política de saúde, em relação a remédios genéricos; a nossa possibilidade de compras governamentais para termos plataformas de petróleo que gera a nossa auto-suficiência. Isso não faremos. Tem de haver uma Alca que lide com o comércio. Os nomes são enganosos. Área de livre-comércio, tudo bem. Acabem os subsídios e derrubemos as barreiras de um lado e do outro. A Alca tenta entrar no modelo de desenvolvimento que os países seguem. Isso nós não queremos e acho que eles entenderam. Os europeus também.
CC: A recente atração do Uruguai pelos Estados Unidos não é uma chumbada de volta no Mercosul?
CA: Não, não. O Uruguai é um país que depende de poucos produtos para exportar. É um país com alto nível de educação e com um padrão de equidade social muito maior do que o nosso. Por várias contingências foi perdendo peso e posições no mercado internacional. Eles se frustraram com o que aconteceu com o Mercosul. O Uruguai pediu para entrar e o Paraguai depois. Eles depositavam grandes esperanças. Acho que ocorreu, no Brasil, uma política de pouco engajamento com o Mercosul. Deixar as forças de mercado atuarem sozinhas, as vantagens comparativas do Brasil serão sempre maiores. A expectativa do Uruguai de que se instalasse lá alguma indústria acabou não se concretizando. Para isso, era preciso a ação do Estado. A integração tem de ser um objetivo estratégico de longo prazo.
CC: E a negociação Mercosul e Estados Unidos prospera?
CA: Essa negociação, dentro ou fora da Alca, não prosperou mais porque todos nós tivemos de concentrar nossas atenções na Organização Mundial de Comércio. A OMC é muito importante.
"O presidente Rooseveltqueria o Brasil no Conselho de Segurança da ONU"
"O presidente Rooseveltqueria o Brasil no Conselho de Segurança da ONU"
CC: A negociação regional esvazia a OMC?
CA: Claro que nunca será uma alternativa. Mas os países vão buscar no regional ou no inter-regional uma compensação para o que não tem no multilateral. Todo mundo viu isso.
CC: Mas, antes de provocar qualquer abalo na OMC, o Mercosul não está se desintegrando? O Uruguai ameaça... CA: Não, não. Não posso esconder que o momento é complexo. Há coisas positivas e menos positivas.
CC: Por exemplo.
CA: Acho que o desejo da Venezuela de se integrar ao Mercosul é positivo. A afinidade que existe hoje entre os presidentes Lula e Kirchner, da Argentina, e a capacidade que tivemos de resolver todos os grandes problemas que existiam. Acho que devemos fazer mais pelos países menores do Mercosul. Não fizemos antes, porque talvez não soubéssemos fazer. Tínhamos a ilusão de que eliminando tarifas iríamos conseguir abrir mercados e o Uruguai e Paraguai se beneficiariam. Só que as economias do Brasil e da Argentina são muito mais competitivas. É preciso, então, algo mais. Hoje defendemos o financiamento para a instalação de indústrias no Uruguai ou no Paraguai.
CC: Essa idéia, neste momento, não soa como heresia?
CA: Não. Não há opção para a integração. A questão não é “quero ou não quero”. A questão é como se integrar. Através de investimento, tecnologia, comércio ou pelo contrabando, narcotráfico, guerrilha? A opção é essa. Mas os problemas surgem. Veja a história da Bolívia. É uma história de opressão contra a grande maioria da população, inclusive com conotações raciais fortes. Neste momento há uma eclosão contra isso. Pode-se perguntar se a diplomacia não previa isso. Não sabíamos exatamente como ia acontecer. Isso, no entanto, não estava fora das nossas previsões. Nossa reação é a procura do diálogo. O afastamento é pior.
CC: Já se fala no confisco de terras...
CA: Vamos ver, vamos ver. Acho que onde há brasileiros nosso dever é protegê-los. E faremos isso respeitando as leis do país, adaptando-nos às circunstâncias. Acho que a Bolívia tem muito a ganhar com a cooperação do Brasil. Ela quer redefinir algumas coisas. V amos ver, vamos discutir. Eles teriam muito mais a perder num esquema de ruptura. Eu não quero que nisso se leia uma ameaça, mas, naturalmente, é mais fácil o Brasil viver sem a Bolívia do que a Bolívia viver sem o Brasil. A questão é não inviabilizar os negócios. Com a economia que se forma no mundo, de grandes blocos econômicos, o Brasil que é o maior país do Continente não o é suficientemente. Precisamos da América do Sul, como precisamos do G-20, como precisamos do G-3, que é um fórum com a Índia e com a África do Sul.
CC: Num primeiro olhar a impressão é a de que a integração está sob ameaça de ser desintegrada.
CA: Cada país é um país. Há 30 anos estávamos todos sob regimes militares. Havia uma homogeneidade de ditaduras. Há países que se inclinaram mais para a direita, outros para a centro-esquerda e alguns mais à esquerda. Há turbulências, abalos sísmicos na região.
CC: São abalos de superfície?
CA: Não. Alguns são muito profundos. Essa subida do poder indígena em alguns países e, sobretudo, na Bolívia, é algo muito importante. Isso tem raízes históricas. Ainda que vindo de raízes profundas é preciso que não aflore como um vulcão destruidor. Que seja uma fonte de renovação e precisamos trabalhar para isso.
CC: Não será mais como antes.
CA: Antes havia um terremoto permanente. Uma instabilidade básica. Uma maioria da população que não se sentia representada pelos governos. Não era suficientemente forte para chegar ao governo, mas tinha força para criar instabilidade que inviabilizava qualquer governo. CC: Isso quer dizer que na Bolívia, não haverá mais, como havia, um ministério para Assuntos Indígenas. É isso?
CA: Como você quiser. O governo agora é autenticamente representante da maioria indígena. Haverá ter abalos. Quando era tudo reprimido pelas ditaduras, tudo parecia calmo.