Espelho, espelho meu...
José Dirceu
Ex-ministro-chefe da Casa Civil
[27/ABR/2006]
Nossas elites, elas mesmas, que diziam apoiar Lula – no que até certa esquerda acreditou – estão aí, agora, radicalmente contra nossa política externa.
Bastou a Bolívia, com seu governo legítimo e seu povo, decidir, democraticamente – porque houve um referendum e eleições presidencial e parlamentar – nacionalizar o petróleo e o gás. É a velha solidariedade de classe, de política e de visão do mundo.
Eles, que privatizaram e permitiram o descalabro do apagão energético no Brasil, apoiavam e sustentavam governos repudiados e depostos pelo povo boliviano. Para entender a histeria atual, é necessário relembrar esse fato histórico, essa solidariedade de classe e de interesses, pois são todos neoliberais e adeptos de um alinhamento externo incondicional à política norte-americana.
A crise que vivemos na América do Sul é fruto de vinte anos de neoliberalismo e de políticas econômicas e sociais que fracassaram. Portanto, os governos, eleitos com plataformas de reformas e de resgate da soberania, precisam avançar e realizar essas reformas, caso contrário, terão o mesmo destino dos governos de Lucio Gutiérrez, no Equador, e de Alejandro Toledo, no Peru.
Parece que esquecemos a experiência da Argentina, quando as políticas do FMI conduziram o país à beira de uma guerra civil, felizmente superada com a eleição de Néstor Kirchner.
O componente ideológico na crítica da maioria da mídia é claro quando condena, não apenas a resposta do Presidente e do governo brasileiros, mas toda sua política externa e, principalmente, o Mercosul. O objetivo não é o futuro acordo com a Bolívia ou a condenação da nacionalização; na verdade, quer ressuscitar a Alca.
O tom alarmista da direita brasileira e de certa mídia é ridículo e contraria toda a nossa tradição diplomática. As propostas de retirar nosso embaixador de La Paz e de aplicar sanções à Bolívia não são próprias de nossa política externa e só agravariam a situação.
A Bolívia precisa do nosso mercado e, nós, do gás boliviano. Portanto, devemos negociar com firmeza, defender nossos interesses e acelerar os investimentos da Petrobras, buscando a auto-suficiência de gás, como fizemos com o petróleo.
Uma coisa é exigir indenizações ou negociar reparações e o preço do gás; outra , é se opor a uma decisão soberana do povo e do governo da Bolívia que, aliás, já foi tomada, no passado, por governos militares de lá, sem a mesma oposição dessa direita de tão curta memória histórica.
Precisamos ter um programa claro: não a expropriações; garantia de abastecimento; negociação justa e soberana do preço do gás. Com relação à Petrobras, devemos negociar preço e investimentos conjuntos, lembrando que construímos Itaipu com o Paraguai.
Temos interesses comuns com os países da América do Sul, nosso mercado natural de expansão. Somos o único país industrializado na região e temos um crescente mercado interno. Portanto, devemos avançar na integração, com a imediata implantação do Fundo para a Convergência Estrutural para a Bolívia, o Paraguai e o Uruguai, e a construção do Banco de Investimentos, para financiar o desenvolvimento.
O Mercosul deve implantar seu parlamento, constituir seu Tribunal de Arbitragem, eliminar a dupla cobrança da Tarifa Externa Comum e instituir um mecanismo para a distribuição da Renda Aduaneira, que prevê a circulação facilitada de bens. E aprofundar os entendimentos rumo à Comunidade das Nações Sul-Americanas.
É patética a postura da oposição, dando como liquidado o Mercosul o que, a rigor, trata-se, apenas, de uma vontade que se expressa na crise e revela o caráter antinacional dessas elites, sempre prontas a defender políticas de submissão de nosso país. Como se fosse possível, depois de tantos anos de desgovernos, com tanta desigualdade, pobreza e problemas historicamente acumulados, construir um mercado comum e integrar nossos povos sem crises e rupturas.
Com esse tipo de mentalidade, a Europa seria, até hoje, um campo de batalha e não a União Européia. Interesses conflitantes são da natureza dos processos políticos, principalmente na arena internacional. O que define uma nação e um estadista é sua capacidade de transformar a crise em oportunidade para defender não somente o interesse nacional mas, principalmente, o futuro que, em nosso caso, está na integração da América do Sul.
José Dirceu escreve às quintas-feiras no JB