O MUNDO PELO AVESSO
EMIR SADER
16/8/2005
10 lições que a crise ensina
A profundidade e a extensão da crise atual podem ser reveladas pelo desmentido a certas supostas verdades, que tentam ser incutidas pela sua reiteração na cabeça das pessoas pelos grandes grupos monopolistas da mídia privada.
Eis algumas inverdades que a crise atual permite desnudar:
1. O governo Lula é o governo da nova direitaQuem fazia afirmações como essa não consegue explicar porque a direita, unida, sem que nenhum de seus setores fique de fora, ataca violentamente o governo Lula. Quem amalgama os governos FHC e Lula não consegue entender porque a direita unida prega o retorno do bloco PSDB-PFL. Política externa, política educacional, política cultural – são pelo menos três elementos de ruptura com a política liberal e pró-estadunidense do governo FHC. E, além disso, o que a direita unida deseja não é tanto a derrota do governo Lula, mas a derrota da esquerda, com projeções históricas, de longo prazo. As posições ultra-esquerdista também disseram que a URSS tinha se tornado uma potência capitalista – e até mesmo imperialista –, similar ou até pior que os EUA, o que não explica a necessidade de derrubar o regime soviético para que o capitalismo triunfasse na Rússia.
2. O crescimento econômico garantirá a reeleiçãoSe é certo que a expansão econômica perdeu fôlego e que o crescimento sustentado era mais uma balela da equipe econômica, já que se tratava de uma recuperação cíclica de fôlego curto, ainda assim não se pode dizer que vivemos uma conjuntura de crise econômica. No entanto, pelo caráter seletivo da expansão, sustentada centralmente na exportação e no consumo de luxo, seus efeitos não se traduzem em melhorias sociais para a massa da população, que não sente que as políticas governamentais estejam a seu favor, enquanto o grande capital deseja ardentemente a manutenção do modelo econômico. Se fosse necessário um exemplo, a economia peruana segue crescendo, mas a popularidade de Alejandro Toledo está em 8%. Para demonstrar que não é qualquer expansão que melhora a vida do povo.
3. A crise revela o caráter democrático da mídia brasileiraEsta é uma das maiores falácias propaladas na crise. A ditadura da mídia monopolista privada é e continua a ser um obstáculo para que o Brasil seja uma democracia. A unanimidade da grande imprensa, escrita e televisiva, revela o totalitarismo que a direita impõe à formação da opinião pública. Basta ver como o processo – apresentado à Justiça pela Procuradoria Geral da República, consubstanciado em provas claras dos delitos – contra Henrique Meirelles, incluindo enriquecimento ilícito, sonegação do imposto de renda, entre outros crimes, não foi objeto de nenhuma investigação por parte da grande imprensa monopolista privada, para quem Meirelles é um “darling”. É uma forma de atuação totalmente distinta se comparar sua atuação em casos de acusações contra algum membro do PT ou de alguma outra força de esquerda.
4. As CPIs são instrumentos eficientes de apuração e punição dos culpados por corrupçãoTrata-se de espetáculos televisivos, de exibicionismo daqueles quem sabem que estão sendo focados pelas câmeras. Utilizam a verborragia demagógica para fazer teatro para a TV, sem que os trabalhos tenham nenhum rigor de apuração. O episódio do oferecimento da ex-secretária de Marcos Valério para pousar nua para a Playboy, segundo ela para financiar sua campanha eleitoral como candidata do PSDB ou do PFL, revela de corpo inteiro o caráter exibicionista dos 15 minutos de glória dos protagonistas das CPIs.
5. A corrupção e a imoralidade são exclusivos da direitaAs denúncias revelam, de forma eloqüente, que dirigentes do PT praticaram sistematicamente atos de corrupção, seja para comprar votos aliados, seja para benefícios próprios, materiais ou de influência pessoal e política. É certo que os votos comprados serviram para beneficiar projetos da direita, mas foram crimes cometidos por dirigentes do mais importante partido de esquerda do Brasil. A vigilância ética, portanto, tem de ser uma atitude permanente da esquerda, sobre tudo e ainda mais sobre si mesma.
6. O povo brasileiro não tem memóriaAs pesquisas de opinião seguem colocando a FHC como o eventual candidato à presidência com maior rejeição. Como ele saiu do governo poupado pela mídia de acusações da corrupção que seu governo cometeu como nenhum outro na história do país, há outro fator que responde pela sua rejeição: o fracasso no plano social. Não importa que ele tenha contido a inflação – ao preço de multiplicar por 11 a dívida pública, que ele dizia que iria combater. O importante aqui é que tornou o povo mais miserável. Não por acaso o problema mais importante e constante apontado nas pesquisas de opinião é o desemprego. Ainda assim a grande mídia monopolista privada faz tudo o que pode para promover a amnésia do povo, para poder resgatar seus novos super-heróis, Severino Cavalcanti e Roberto Jefferson.
7. Esquerda e direita são iguais, fazem as mesmas políticas e praticam a mesma corrupçãoOutra falácia: os dirigentes do PT envolvidos em corrupção foram produto da mentalidade mercantil que a direção do partido foi assumindo nos últimos anos, a mesma que se expressa na política econômica do governo – lembrem-se de que Meirelles e Palocci são também acusados –, e que está em contradição frontal com os ideais de esquerda. A política econômica é a herdada de FHC e a mentalidade mercantil é sua irmã gêmea. A esquerda privilegia o social e a ética, tem dirigentes no PT e em outros partidos de esquerda que as expressam, assim como governos, aqui e em outros lugares, que as privilegiam. A direita – de Pinochet a Salinas de Gortari, de Menem a Fujimori, de Collor a FHC, de Carlos Andrés Perez a Sanchez de Losada – expressa na corrupção sua mentalidade privatizante em relação ao Estado e aos bens públicos.
8. Derrubar o governo Lula é bom para a esquerdaA direita sabe que derrubar o governo é bom para ela, porque sabe que a alternativa hoje são eles, a direita. A esquerda precisa saber que, ruim com Lula, pior sem ele. Porque significaria a volta da política de subserviência à hegemonia imperial estadunidense, com todas as graves conseqüências para o Brasil, para a América Latina e para o Sul do mundo. Significaria a volta da privataria, na educação, na privatização da Petrobrás, do Banco do Brasil, da Caixa Econômica, entre outros.
9. A ética justifica aliança com a direita para denunciá-laNada justifica alianças com a direita, com ACM – pai e neto –, com Álvaro Dias, com Artur Virgílio, com o César Maia Filho etc. Quem faz isso, faz o jogo da direita, se deixa manipular por ela. Quem melhor do que uma voz proveniente da esquerda para condenar um governo eleito pela esquerda? Triste espetáculo de parlamentares que se pretendem de esquerda, que não se diferenciam em nada das denúncias e do vocabulário dos tradicionais parlamentares da direita! Para a esquerda, a ética é tão importante que não pode ser manipulada pela direita, protagonista dos maiores casos de corrupção da história brasileira – nem sequer recordados por esses parlamentares originários da esquerda, hoje parte do bloco opositor hegemonizado pela direita.
10. A solução para a crise é somar mais forças do centro e da direitaO governo vem praticando essa solução, nomeando ministros dos PP e do PMDB, que se revela não solucionar nada. Porque a crise do governo não é a da falta de apoio do centro e da direita, mas falta de apoio popular. Gozasse de apoio social, o governo poderia enfrentar essa crise, mesmo com seus erros, derrotar a direita, expurgar seus quadros envolvidos em corrupção, e sair fortalecido. Não é tampouco o fantasma do “chavizmo” que assola o governo. O governo de Hugo Chávez simplesmente promove a prioridade do social, na forma possível em um país petroleiro: investimento 25% dos lucros do petróleo no social. No Brasil, ao diminuir já o superávit fiscal para 3,75% do PIB, topar um aumentar o salário mínimo para R$ 400, mudar a equipe econômica, o governo pode voltar a conquistar o apoio dos movimentos sociais e do povo. A solução da crise é de esquerda, ou não será uma solução.
Emir Sader, professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), é coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj e autor, entre outros, de “A vingança da História".